O Homem do Lixo (conto) - Renê Paulauskas

 Ele pensava: Era gelado ou muito quente. Era dormente mas sem dormir direito. Era a fome constante e os restos na lixeira. Eram dores e confusão mental. Era ser invisível. Era ser odiado. Era o inverso da vida que tenho hoje.

"Hoje sou reciclador de lixo remunerado. Tenho meu barraco. Tenho minhas coisinhas. Gosto do meu trabalho. É trabalho duro, mas como dizem lá no curso, tô ajudando a melhorar o mundo.

Mulher e filhos não tenho. Sonho ainda em ter uma família. Não como aquela, de pai batendo na gente. Gente tem que ser respeitada, isso não se faz. Também não sou santo. Mexeu com meu cachorro viro bicho! Também tem que ter respeito com os animais.

Aqui no morro tô até plantando uma hortinha. Vou trazendo da rua e planto tudo nesses vasos de plástico. Tá ficando bonito, não?

Outro dia sonhei com minha mãe, faz mais de vinte anos que não a vejo. Desde que saí do interior até chegar aqui.

Cidade grande, no começo era tudo novidade. Mas não tive onde ficar, logo fui me sujeitando. Voltar pra apanhar, não voltava não! O jeito era se virar pelas ruas. Comi o pão que o diabo amassou. 

Mas hoje tou aqui. Eu e Flip (cachorro). Aceita um cafezinho?

É difícil ter com quem tomar café por aqui. Não que os vizinhos não sejam bons, mas não tem consciência ecológica. Jogam tudo no chão. Eu que fico juntando e separando pra levar.

Outro dia briguei com uma dona que tava jogando tudo no córrego. Falei, vai emporcalhar o rio! Ela nem me ouviu. Olhou pro lado como se não fosse com ela e foi embora.

As crianças eu tento ensinar. Mas tem umas que nem dão ouvidos. Correm pra brincar e falam, lá vem o homem do lixo.

Eu me sinto igual aquele filme que vi um dia na cooperativa: Frankstein. Me olham como se eu fosse o diferente, o homem do lixo.

Mas na cooperativa é diferente. Lá eu sou alguém. Tem os colegas. Os cursos. 

Mas é trabalho duro. Saio cedo com o carrinho, só volto à noite. Vou pegando tudo no caminho. Papel, plástico, vidro... É pesado. Mas melhor que ficar morando na rua.

Na rua não quero não. Fiquei magro. Só dormia e fumava pedra. Na lombra. E eu gostava. 

Até os homens um dia me pegarem e colocarem numa clínica. Que clínica que nada, aquilo era uma prisão! 

Nos obrigavam a trabalhar de graça, falavam que era terapêutico (risos). Filhos da puta! Não sei onde sofri mais, na clínica ou nas ruas.

Mas hoje droga não quero mais. Passou o tempo. Tô na meia idade, como dizem. 

Sinto saudade de mamãe. Tanta coisa que vivi e não pude contar pra ela (com os olhos cheios de lágrimas). 

O pai eu não perdôo. Onde já se viu bater em criança?! Aquilo nunca foi pai. É um animal. 

Nem animal é, né Flip (abraçando o cachorro e sorrindo).

Mas são coisas da vida. Um dia eu perdôo ele.

Moço, desculpa a emoção. Essa vida é muito solitária. Muito solitária.

Às vezes faz falta uma família. Uns guris. Uma mulher.

Outro dia quase me acabo na cachaça. Outra que eu gostava. Gostava, não, anestesiava. 

Hoje é mais difícil. Tenho que trabalhar todo dia. Se não não pago o barraco. Tenho que ficar são.

Tá aqui meu vício, ó! Café! Pra ser produtivo, acordar cedo (risos). 

Mas hoje é meu dia de folga. Daqui a pouco vou tomar banho e descer lá pro centrinho cultural. Lá tem dança. Eu fico só olhando. Mas eu gosto.

Vou, fico olhando, volto. Distrai. Tem o cineclube também. Vejo uns filmes. Tava parado por causa da pandemia, mas já voltou.

Outro dia uma senhora ficou me olhando. Não tirava o olho de mim. Eu tava de tênis, todo arrumado. Olhei feio pra ela e disse: Eu não sou lixeiro não! Ela riu. Desde então nos tornamos amigos. Ela tá todo domingo na lanchonete do centrinho.

Consegui até um celular. Desses velhinhos. Também não sei mexer nesses modernos. Ela me liga as vezes. A Cláudia. Por crédito é que é difícil.

Ela gosta de conversar. Daí a gente só marca por telefone e vai se encontrar. Ela não é linda, mas não é feia não. Branquinha. Mas tem um sorriso lindo. Não tive coragem de perguntar sua idade, mas deve ter uns cinquenta anos.

Não quero avançar o sinal. Fico só olhando. Olhando e conversando. Mas aquela risada dela é muito engraçada. É aos soquinhos. Mas ela é legal. Consciente, separa o lixo.

Ela me ensina muita coisa, papo cultural. Disse que é socióloga mas não trabalha. Vive do dinheiro da mãe, que é aposentada. Mas é gente boa. Gosta de pintar uns quadros. Uns tal de abstrato. Não entendo muito de pintar, mas é bonito, as cores. 

Eu desenhava de pequeno. Mas daí parei. Quem sabe tá na hora de voltar (risos). 

Daqui a pouco tô descendo lá. Ainda preciso tomar banho e me arrumar.

Acha que já tá bom, moço?

Então é isso.

Amigo, como te disse, tenho que tomar um banho. Ficou boa a gravação? É pro jornalzinho da cooperativa? Mas as coisas íntimas você vai cortar, né?

Prazer, viu. Até mais ver!

Ah, uma última coisa. Outro dia tava recolhendo o lixo numa rua bonita num bairro Chic, e vi esse pacote embrulhado no meio do saco com esses papeizinhos verde e branco. Você sabe o que é isso?

Dólar? Esse papelzinho é dólar? É dinheiro?

Que? Tem uns dois mil reais aqui? Caramba (risos) tô rico! (risos).

Quê? Precisa trocar? Casa do que? Câmbio?

Ah, tá bom. Depois vou ver isso com calma. Obrigado, viu!

Até mais ver!"



Comentários

  1. Opa, vc tá bem na linguagem coloquial, bem solto, muito bom, gostei muito. Acho que vc devia revisitar seus textos pra acertar uma coisinha aqui outra lá, dar uma reforçada que te ocorra depois no argumento, e ir dando aquela penteada final nos textos

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