Folha de papel - Renê Paulauskas

Engrenagens corroídas em meu sangue. Faço tudo da melhor maneira possível. Mas a ave desgovernada no meu cérebro voa cada vez mais alto. Já não sinto medo, não tanto. A folha rasga na minha frente de modo tão claro e definitivo que sinto meu corpo relaxar. Não haverá novos tempos, novas horas. Seremos poupados de tudo. Todo sofrimento, físico, psíquico, social, político. Não seremos livres. Simplesmente não existiremos.

Não existe vida sem sofrimento. Essa vida na Terra é um eterno sentir fome, matar pra comer, ter desejos e perpetuar a espécie. Esse ciclo se perpetuou por milhões de anos. Até que interferimos inconsequentemente e desequilibramos o clima, pondo assim uma pedra na evolução e no mundo como conhecemos.

Só nos resta aceitar. Como uma folha de papel caindo no asfalto. Sentir o brilho do sol cada vez maior. E a beleza das paisagens que dão lugar à desastres naturais. Perceber a beleza da vida na Terra, mesmo com fome, guerras, doenças e miséria. Ver tudo o que o ser humano construiu, a ciência, as artes, a filosofia. As relações de afeto em todos os seres. O canto de uma baleia, um pássaro. 

Valeu a pena. Ter vivido essa vida curta. Ter visto deuses, o espírito do meu pai desencarnado. Ter visto que tudo não é o que parece. 

Também valeu. Ter tido uma mãe e uma filha. Amigos nessa jornada. E fé pra seguir a vida.

Amém.

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