Tudo passa- Renê Paulauskas
Tudo passa e voltamos a curtir a vida, as sensações, temperaturas. O mal estar se instala e vai embora depois de algumas noites mal dormidas. Não existe miséria que se aglutine por mais de três dias, três semanas, três meses. Três anos. E isto pode ser como uma cadeia, onde vá envelhecer e deixar a vida do lado de fora por um bom tempo. Podem passar dez anos até que se recupere de um trauma, uma enfermidade, uma doença crônica. Mas tudo passa. Mesmo que não percebamos, passa. Os ouvidos não são mais os mesmos. Os sentidos perderam o sabor. O enredo mudou. Você mudou, e nem percebeu. Agora é uma coisa ainda não entendida, assim como era quando ainda era jovem. Mas é isso que muda. Você não é mais jovem como fora. E ao mesmo tempo que isso lhe faz falta você deixou que se interessar da mesma maneira. Você quer mais desacelerar. A ansiedade é cada vez menor. Os sonhos são cada vez menos extravagantes. Porém é cada vez mais exigente. Intolerante. Percebe que aqueles velhos de cara fechada que você temia passam a ser você amanhã. Que isso te incomoda. Mas te engole. E o seu outro lado, pacifista, tranquilo, ficou pra trás. Atrás daquela doença. Daquele trauma. Daqueles dez anos. Três anos. Três meses. Três semanas. Três dias. E vê que era possível respirar e não sabia.
E assim, de
pouco em pouco, vamos nos afundando cada vez mais. Logo mais à frente nos
perguntamos: Por que não veem o jovem que sou? E já estamos velhos. A pele
ainda não caída. O rosto se ajeita frente ao espelho. Fora dali, sempre
descontentes. Procurando algo, sempre famintos. Querendo algo, sempre carentes.
E nos agarramos ao de sempre: Os poucos amigos. E pior que começamos a
acreditar que não existirão mais muitos novos. Mesmo que faça novas amizades.
Que tudo é mais árido. Que seu tempo está passando. Que você não acompanhou a
passada conforme o esperado. Que deveria estar com dinheiro, independente,
morando sozinho. Que as moças não sairiam mais com você pela sua beleza e
juventude, mas por ter um carro e um apartamento e dinheiro para gastar. Que
seria certamente trocado por você mesmo anos mais jovem, mas ainda seguraria o
resto da vida que lhe cabe com os dentes. Mas rejeitou essa ideia. Anda por aí
com roupas velhas se divertindo com amigos tão vagabundos quanto. Insistindo em
tocar sem sabe-lo. Acreditando na juventude como algo interior.
Por um lado
sua filha está crescendo, uma adolescente. E se sente menos protagonista agora.
Vê sua avó escondida em casa. Escondida da vida. Sem amigos. Sem marido. Uma
vida árida. Com sentido restrito. Sem grandes emoções. E você está bem no meio.
Entrando nessa vida mais desiludida, mais sem graça. Mas ainda não é velho o
bastante. É algo indefinível, como toda idade é. Mesmo assim, não quer virar
adulto. Quer ser criança. Espontâneo. Brincalhão. Curtir a vida. Como qualquer
velho. Como minha avó quando sai para passear. Como era o meu pai aos sessenta
anos. Como é minha mãe agora.
II
Eu sinto
saudade. Mas não é de você. É do que eu não vivi contigo. Do que queria e ainda
sinto falta. Sou um pobre mendigo. Vivendo de restos há anos. Devo ser tão
miserável que os outros pensam que não tenho nada a oferecer. Devo estar em
falta, com o mundo e comigo mesmo. Só não sei sair daqui. Me esforço numa
tentativa contra a corrente. Mas o mar está longe. É desse ponto que quero sair.
Desrrepresar. Viver com toda possibilidade que se vive uma vida. Sonhar e
realizar. Experimentar. Sorrir todos os dias e ter dias comuns como todas as
pessoas.
Não tenho
trabalho há um ano. Antes disso nos últimos cinco passei às migalhas. Faz falta
uma vida normal. Não sei como seria, mas quero de novo um trabalho em que me
sinta feliz. Ter dinheiro, segurança, cotidiano, fim de semana. Fazem anos que
vivo numa segunda-feira como num domingo e isso deixou de ser algo bom.
Talvez assim
aquiete um pouco. Seja menos exigente com as pessoas. Aceite a vida mais como
ela é e possa respirar nas arestas, sonhar nos intervalos e cantar no chuveiro.
Sem pensar em ser cantor. Esse se é o que me incomoda. Por mais que eu pense
que está perto é sempre uma sensação. Uma motivação. Uma orientação. Mas tudo
se perde numa segunda feira vazia e o prazer de não fazer nada ou nada
produtivo.
Sinto uma
ponta de medo de imaginar como eu seria agora com emprego. Como seria meu eu
social inserido novamente. Se negaria minha porção out saider. Se me vestiria
do inverso como um traidor. Se aceitaria a máquina e pensasse no dinheiro como
uma solução. Se deixaria de ver as coisas por elas mesmas. Será que não somos
assim?
E volto a
dizer. Ser escravo. Para nas horas vagas poder sonhar. Vivo num marasmo. Cansei
de não ter dinheiro. De meu trabalho não ser usado pelo mercado. Quero
participar de tudo o que existe. Quero dar meu sangue. E viver nas folgas. Mas
quero viver. Fazer algo com o que me sinta vivo. Vibrante. Orgulhoso. E desse
caldo fazer parte nova da minha vida dentro do sistema.
III
Cansado da
cidade. Onde tudo é complicado e nada permitido. Onde os esnobes distribuem
senhas. E as pessoas se acotovelam em bares sujos. Cansado de ter que pensar
para sair de casa. Para respirar. Para ir. Tudo é perigoso. Pelo menos carrega
o perigo do desanimo. É preciso se inspirar para sair de casa. É preciso uma
luz. Somente ir pra rua não é possível. Tem o perigo de ser tragado pelo vazio.
De se cegar no caminho antes de voltar pra casa. Às vezes até dentro de casa é
perigoso.
Falta de
vida. Falta de amores. Falta de temperos. Falta de tudo um pouco. Até de falta.
Quais são meus trilhos? Meus objetivos? Meus alicerces? Minha filha está
adolescenteando por aí. Não tenho trabalho. Não tenho namorada. Moro com a
minha mãe e dou graças a deus por isso. Tenho poucos amigos, mas ainda os
tenho. Ainda me resta algum dinheiro do seguro da morte do meu pai. Ainda hoje
lembrei dele. Pensei como seria bom revê-lo, mas não. Seria bom se não fosse
ruim. E agora que ele partiu é mais fácil lembrar dele do que quando estava
vivo. Assim como depois de rompermos com nossas amantes as valorizamos como uma
coisa que elas nunca foram só para preencher aquele vazio. Gostava muito do meu
pai. Foi um ótimo pai e amigo. Mas é muito mais fácil lembrar dele hoje.
O passado
ilumina nossa história com diversas cores. Mas é preciso viver. Achar novas
histórias no presente ou nos tornamos moribundos. É desse presente que sinto
ânsia. Como um vampiro ressecado. Querendo viver tudo com uma intensidade fora
do normal, mas num corpo velho, que começa a se cansar.
Imagino os
risos. O frescor da noite. A varanda. As bebidas. Uma história. Várias
histórias. Um romance. Tudo estava ali numa composição perfeita, delicada,
iluminada. Só porque lembro dela. De algum modo somos construídos pelo passado.
Ou pelo que nos lembramos.
IV
Somos todos
porcos imundos. Comemos todas as outras espécies e as criamos só para isso.
Para passar mal. Ter uma indigestão. E arrotar. Como se isso limpasse nossa
alma. De toda nossa imundície e barbárie.
Dizem que as
cidades estão mudando. Não acredito muito nisso. Que estão se reorganizando.
Que estão sufocadas, como eu. Que é preciso voltar às ruas para brincar agora
de ser ecológico, educativo, sócio-político. Que seja. Mas o ser humano é
sempre o mesmo.
Em troca,
cada vez mais zumbis de internet. Menos pessoas para conversar. Menos pessoas
nas ruas ou aonde for. Se estamos mudando é para um ser mais apático. Algo mais
domesticável.
Logo não
será possível conhecer pessoas ao acaso. A não ser que seja um chato. Ou os
marginalizados ou os marginais. É deles que tenho memórias. De seus corpos
ocupando as ruas. De seu olhar levemente tocado pela droga procurando
companhia. De seus afetos puros de corpo inteiro. De estarmos vivos com nós
mesmos. Quase sempre sem dinheiro, e de que às vezes esse era nosso limite, brincar
de ser gente até se esgotar os trocados.
E os idiotas
com a vida ganha sem terem onde gastar. Fazendo programas que quanto mais
sofisticados, mais deixam a desejar. Que não sabem trocar palavras, fazer
confidencias ou dividir o silêncio. Pessoas sem sorte de serem livres. Presas
não se sabe por onde. Talvez no mundo das aparências. Não da beleza. Mas do
anticéptico.
Falso
comodismo dos meus trocados. Me tiraram da sarjeta e da vida que amava. Me
deram uma porca loção e uma roupa limpa para não frequentar a boca do lixo.
Hoje vou me vestir no escuro. Vou corromper meu amigo que como eu hoje está
limpo e aleijado. Vamos procurar poesia nos nossos amigos. Bandidos. Cruéis. E
sempre vivos.
V
Hoje à tarde
algo mudou em mim. Acho que foi o olhar daquela adolescente. Como se passasse
uma tranquilidade. De que tudo vai dar certo. De que as coisas se encaixam sem
esforço. Fiquei um tempo no quarto encostado em minha gata. À noite caindo.
Depois liguei a TV e comecei a ver coisas que nunca veria num estado normal.
Foi bom isso que a adolescente me passou. Acho que era amor.
Incrível
como certos estados duram. E outros não. Graças a deus me separei de uma
roubada. Uma mulher sem graça. Não há nada pior que isso. Quando se percebe, é
ter sido roubado, mas antes mesmo do que se tinha imaginado. Pra recuperar.
Somente um olhar interessado de uma adolescente bonita.
Hoje acho
que não vou sair. Vou ficar em casa curtindo meu descanso. Eu e o Vinil fomos
pra rua cedo e quero curtir a minha casa que tanto gosto. Gostaria de ser
sempre assim, calmo e tranquilo e curtir as coisas simplesmente por existirem.
Quero aproveitar enquanto o efeito não acabou. Quero sentir como seria se fosse
outro.
E pensando
bem. Talvez fosse sem graça. Ou não. Talvez fosse normal. Um pouco de talvez,
acho que me caberia bem. Infelizmente as coisas não são todo dia assim. Não é?!
Às vezes somos empurrados pra coisas inesperadas. Que não queremos. Que
odiamos. E se nesse dia não nos olham, somos capazes de piorar. Até cavarmos um
posso, nos rebelarmos. Enquanto é mais fácil olhar para alguém com a face
tranquila, serena, feliz.
VI
Fazer amigos
é mais difícil do que parece. As pessoas são receosas. Pelo menos as que me
interessam. Em troca disso, dão seu facebook. São cordiais. Cumprimentam nos
eventos. E seguem. Realmente, quando não há conexão, melhor não insistir.
Quando vemos, estamos atolados de contatos que não nos favorecem. Só por algum
dia estávamos conectados. E você pisa na rua ansioso por se conectar. Em
sensações. Em algo novo. É quase um vício. E às vezes volta mais vazio ainda. E
os intervalos. Enormes. E volta. Pra sua vida tranquila. Sem maiores
expectativas. Curtindo ainda ter motivos para festejar. E que se fodam todos os
que não sabem viver. Que você sabe. Mas hoje quer ficar só.
Liga para
sua filha que foi para uma chácara com as amigas e só volta à noite, e percebe
que está tudo bem. Que a vida é curta e logo sua filha vai estar crescida, tão
velha e chata como você. E por isso resolve sair. Passear. Ser menos ranzinza e
dar uma chance para as coisas acontecerem. Que está tudo na nossa cabeça o
tempo todo e são os novos estímulos de definem nosso agora.
Resolve
tomar um banho e fazer a barba. Seu amigo foi fazer até o cabelo. É sábado.
Mesmo para nós que não trabalhamos é final de semana. E volta a creditar na
vida. Imediata e urgente.
Ri de si
mesmo. De como tudo isso é ridículo. Insano. E perigoso. E ainda temos a
coragem de chamar isso tudo de realidade. Se assusta num frame. E logo já é só
mais um estímulo. Uma nova sensação como sentida num filme. Que te conecta num
clima de entretenimento. E logo passará quando estiver tomando banho. Banhado
de outras sensações.
VII
Há
pouquíssimo tempo fui coagido de parar de fazer caricaturas na rua e isso
desmotivou em parte minha arte. Que sempre foi popular e direta. Hoje pensei em
fazer um mural em cartum para expor em todos os lugares proibidos da avenida
Paulista. Surgiu como uma ideia genial e por isso acho que vai dar certo.
A cidade
voltou a respirar com os artistas de rua. Falta invadirmos as galerias, os
centros culturais. Hoje os gêmeos fazem exposições pelo mundo. Eu sinceramente
acho uma bosta. Assim como Maurício de Souza. Há quem diga que eles chegaram
lá. Com certeza que perderam muito. Viraram homens de negócios. Não são mais
artistas. Nunca foram.
Um artista
não vive sem mostrar a sua obra. Mas não pode viver para ser visto. É preciso
respirar. É preciso ócio. Não acredito em Dalí, muito menos em Picasso. A não
ser na fase azul. Quando passava fome e tinha que limpar a bunda com seus
retratos. Acredito em Matisse, Magritte e tantos outros.
Não se sabe
o segredo do sucesso. Mas é algo contagioso. Que te esteriliza por dentro. Como
uma bolha que se alimenta de tudo que respira. Quando você vê está morto. Só
lhe resta acordar, dormir, trepar, mas sem nenhum sentido. Como um zumbi. Pra
essas pessoas só há uma solução: Perderem tudo e caso não tenham se matado,
achar algum sentido pra vida.
Minha vida
está um pouco sem sentido. Mas há um estalar dos dedos para realizar algo. Algo
que respire. Algo que de ar.
VIII
Hoje não
estava pra ninguém nem pra coisa alguma. No final me deu uma crise de querer
sair de casa, mas quando percebi, já havia desmarcado de sair com todos que já
havia marcado. Tive que aceitar o fato de ter abortado meu próprio lazer. Se
pudesse sairia sozinho. Mas o medo de sentir aquele vazio perturbador ainda é
grande. Quando mais novo vivia passeando sozinho. Procurando coisas pela cidade
em lugares incomuns. Um dia encontrei uma bexiga, aquilo me salvou a noite. As
pessoas buzinavam. Pareciam perceber o andarilho que sou. Hoje me escondo em
trajes seguros. Gasto meu dinheiro que nunca tive. Deixei de incomodar os
imbecis. Me tornei um, disfarçado.
Tem tantas
coisas equivocadas dentro de mim. Dez anos de análise não mudariam nada. Talvez
algo novo. Algo a tirar a cegueira. Algo a permitir enxergar. Deixo de ver
coisas. Me comporto como algo aceito, modesto. Mas não. Rejeitei a chata. Isso
prova que ainda estou vivo.
Estou
sedento de fechaduras. Quero abri-las todas. Escancarar o mundo. Mas a
discrição é meu maior recorte. Deixei de ser ator. Músico. Sou desenhista.
Cineasta. Quero pessoas. Não mulheres bonitas. Um baile de coco. Não uma balada.
E fugir sorrindo. Procurando a próxima porta. O novo enredo. Até deixar tudo em
paz.
Enquanto
isso me disperso em pisos e paredes. Provando que sou fraco. Que se fincam as
estacas e o corpo desaparece. Que sobram lendas. Fantasias. Que o registro das
coisas não é o olhar. E nos envolvem. Distribuem. Contagiam. E não era a gente.
Foi algo que por ali passou e nos usou como enfeite.
Deste modo
não há como não agradecer aos deuses. Aos orixás. Por mais que se tenha receio
de encontrar ausência de autenticidade em certos lugares. Os meus. Encontrei
nos lugares mais improváveis. Uma vez na praia. Outras tantas assistindo peças
teatrais. Agradeço aos deuses. Aos orixás.
IX
Acabei de
voltar do bar. Em menos de meia hora vi uma mulher reclamando porque tinham lhe
dado um bombom em vez de cocaína, um colega falando bem da policia e uma menina
dizendo que ia votar no homem que ela não sabia o nome. Dei graças a deus de
ter chegado em casa. Troquei a camiseta fedendo cigarro e não tenho muita ideia
para este capítulo.
Mal vejo a
hora de começar o café filosófico de hoje. O tema será ócio criativo. Algo que
tem a ver com o nosso coletivo. Por outro lado estou de saco cheio de assistir
tanta TV hoje à tarde. Ainda queria um conforto que fosse minimamente mais
espiritual.
Pra mim as
chaves estão nas pessoas. São elas que abrem as portas e sem perceber você as
abre para outras pessoas. Gosto de ouvir meus discos com amigos, namoradas. Gosto
de tocar com outras pessoas. No cinema me sinto bem sozinho. No teatro. Chaves.
Por todo lado. E precisamos enfrentar, digerir, assimilar, ou nos energizar com
o material humano, desde que seja tolerável.
Nessas horas
sou grato à minha mãe, minha filha, minha irmã, minha sobrinha, meus amigos. O
resto é tão vago como sensações que nos distraem ou arrebentam sem fazer parte
de algo que se sustente. Frações. Pedaços que se despedaçam. Enquanto somos
capazes de interligar o todo e sermos realmente felizes.
X
Hoje,
segunda feira, vou assistir a um show de um músico que parece que está mudando
os rumos da viola no Brasil. Um tal de Fernando Sodré. O timbre da viola, muito
agudo se comparado ao violão, não me agrada muito. Assim como não me agrada
minha voz aguda também. Vi umas músicas dele no You Tube e fiquei empolgado.
Deu até vontade de fazer um som.
Tocar é uma
coisa das que me dá mais prazer. Principalmente com outras pessoas. Gostaria de
conhecer mais músicos. Músicos de verdade. Mas ainda toco muito mal para isso.
Esse
exercício diário de fazer coisas por prazer é o que faz a gente conhecer novas
técnicas. Aperfeiçoar os sentidos. Mas não é de uma hora para outra. Levam
anos. Às vezes mais de uma década. O melhor mesmo é fazer as coisas por prazer.
Quando menos se espera já está tocando por aí.
Vou dizer a
verdade. É mais prazeroso ser um músico amador do que um desenhista
profissional. Adoro desenhar, não é isso. É que quando se descobre profissional
de alguma coisa, parte do desejo some. Como se depois de chegar em algum lugar,
não tivesse mais para onde ir. A própria palavra já diz: amador: aquele que faz
por paixão.
O medo de
não querer fazer coisas em que não somos bons, é uma besteira. Só fazemos
porque ainda não somos bons. À medida que sabemos que somos bons, perde a graça,
e arrume um novo hobbie.
XI
O show foi
ótimo. Encontrei o Morgani. Sentamos atrás de um grupo de adolescentes que
assistiram todo show entediados. Estavam lá por obrigação, para fazer um
trabalho de escola. Fico pensando como essas obrigações escolares são
prejudiciais para o desenvolvimento. Em como a escola deveria ser mais livre. E
em outra parte, como existem adolescentes chatos.
Imaginei ser
uma das adolescentes àquela que no outro dia ficou me olhando. Acho que não
era. Ficaria frustrado se ela me visse sem me notar. Era outra, do mesmo
estilo. Mas sem a mesma beleza.
Eu e Morgani
saímos do show para comer alguma coisa. Ele comentava cabisbaixo que um amigo
apanhara de uns colegas no bar da sua rua. Achamos um lugar evitando os botecos
da boca do lixo.
Não
demoramos muito, fui embora, chegando às 22h em casa. Um passeio tranquilo e
agradável. Como deveriam ser a maioria.
XII
Tive que
desligar a TV, pois estava o Arnaldo Jabor falando e por mais que ele saiba
falar muito bem, não há nenhum conteúdo que se salve. Vim pra sala e estou
ouvindo de fundo minha mãe vendo o show de rock progressivo de seu namoradinho
de infância. Peguei rincha com este estilo de música por causa duma namorada
depressiva que ficava ouvindo Pink Floyd o dia inteiro.
Cada vez
mais percebo que a música é um estado de espírito. Menos quando ouço o som dos
pássaros, daí me percebo encantado por sua música tentando decifrar seu
espírito. Música talvez seja a expressão de arte mais direta do ser humano e de
outros animais, assim como a dança. Talvez por isso gostamos tanto, ou vice
versa.
Começo a
mergulhar em sons e ritmos sem me perguntar sobre seu estilo, padrão. Uma recém
descoberta. Os sons como linguagem, expressão. E vejo a possibilidade da existência
daqueles sons em outro contexto cultural, artístico. É como se uma pequena
porta se abrisse me dizendo que tudo é possível. Basta experimentar.
Me parece
que essa experimentação vai ser um pouco solitária, já que não tenho curtido
tanto tocar com dois dos meus amigos que insistem no mesmo som. Pra quem
começou no Punk, está bom.
XIII
Acabo de
acordar e tomar café com minha mãe. Ela, um espírito jovem, gostou do som da
banda de Rock que vai tocar hoje. Após ela falar isso, perdi um pouco o
interesse, engraçado como nós filhos somos chatos. É um tipo de afirmação que
depois de uma certa idade passa a ser ridículo.
Deixei de
sair com ela para ver o show do Gil pelo mesmo motivo. Mas lembro que ela
quando fora baladeira também não queria sair com seu filho adolescente. Acho
que tenho um pouco de retardo.
Com meu pai
foi o inverso. Sempre me senti como seu amigo e foi agora, no fim da vida, que
percebi que era meu pai. E ser filho exige outras coisas além da amizade. Que
amizade é gratuita, ser filho não. Apesar que ele sempre foi um ótimo pai.
Quando tive
que passar umas noites dando remédios no meio da madrugada para ele, fiquei
mal, pois não posso ficar sem dormir diariamente, fico mal, surto. E uma dessas
vezes surtei e ele ficou muito chateado. Depois disso passei a voltar pra minha
casa para dormir.
Papai,
papai! Espero que esteja bem. Que esteja curtindo daí de cima e que existam
festas para ir e mulheres para beijar. Que os vinhos sejam bons e não falte sua
cachaça. Que existam homens aí como você. Loucos, engraçados. Que eu estou
muito feliz aqui embaixo graças a você e tenho que resolver a minha vida o mais
breve possível, pois logo mais o dinheiro que deixou pra mim vai se extinguir.
Um grande beijo papai! Um grande beijo!
XIV
Ontem
esqueci de tomar meu remédio e fiquei conversando com minha mãe sobre coisas da
minha cabeça. Só me fez mal. Hoje estou bem e pretendo não fazer grandes
esforços intelectuais. É um problema, porque por mais que eu queira fugir desse
tipo de desgaste, ela está sempre vendo esses conteúdos numa TV de trinta e
nove polegadas e gosta de discutir esses conteúdos comigo.
É preciso
ter um autocontrole assim como o de não beber em excesso ou comer muita carne
antes de dormir. Não sou santo. Ainda estou me acostumando. Até outro dia fazia
tudo o vinha na mente, e vomitava e tinha ressacas, hoje tento evitar. Nem sempre
é possível. Ontem de madrugada vomitei os torresmos que comi à noite.
Não pretendo
controlar tudo pela previsibilidade das coisas. Pois as coisas não são
previsíveis como as imaginamos. Mas é preciso evitar certos desgastes
desnecessários. Como beber demais, comer coisas indigestas em demasia e deixar
de tomar os remédios.
Outro dia,
numa feijoada, eu e o Vinil encontramos um cara que fazia apologia a não se
tomar remédios psiquiátricos. Deixamos o cara falar um monte de bobagens, pois
sabemos como é cômodo para quem nunca surtou ficar fazendo apologia à
antipsiquiatria.
XV
Reli o texto
até agora, cortei alguns capítulos e confesso que não imagino como isso se
tornaria um livro. Talvez me desse mais dor de cabeça tentar isso do que
simplesmente ir escrevendo o que me desse na telha. Mas percebo que talvez já
não seja possível.
Este
capítulo mesmo, já comecei a escrever de modo como os outros, uma narrativa
direta, sem frescuras, meio beat. E tenho que ser sincero. Está falso como o
diabo. A própria preocupação de preencher pelo menos meia página em cada
capítulo foi o começo disso.
Talvez ainda
volte a escrever e dar continuidade e venha a apagar este final. Não sei ainda
ao certo qual decisão tomar. Me corromper pela literatura ou deixar isso tudo
como um relato autentico, verdadeiro.
Escolho o
segundo. Bem sabendo de que as coisas começariam a desengrenar e que não quero
que isto se torne um parto.
Sobre o
começo do texto, para retomar e não deixa-lo sem sentido. Digo que continuo
vivendo e envelhecendo. Que essa condição não mudará por mais que escreva um
livro, ou até mais de um. Que me imaginem em breve em melhores condições,
físicas e espirituais. Amém.
Impressionante, suas crônicas são muito profundas, pega a gente pelas reflexões de assuntos sérios, pela emoção de sentimentos sinceros e pelo seu senso de humor! parabéns Renê, não pare nunca de escrever, mesmo que poucos leiam, acho que tem muito proveito. Gostei demais!
ResponderExcluirparabéns Rene, percebo que escreveu com muita sabedoria e se vier mais texto aguardo com ansiedade. Vinil
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