Tudo passa- Renê Paulauskas



Tudo passa e voltamos a curtir a vida, as sensações, temperaturas. O mal estar se instala e vai embora depois de algumas noites mal dormidas. Não existe miséria que se aglutine por mais de três dias, três semanas, três meses. Três anos. E isto pode ser como uma cadeia, onde vá envelhecer e deixar a vida do lado de fora por um bom tempo. Podem passar dez anos até que se recupere de um trauma, uma enfermidade, uma doença crônica. Mas tudo passa. Mesmo que não percebamos, passa. Os ouvidos não são mais os mesmos. Os sentidos perderam o sabor. O enredo mudou. Você mudou, e nem percebeu. Agora é uma coisa ainda não entendida, assim como era quando ainda era jovem. Mas é isso que muda. Você não é mais jovem como fora. E ao mesmo tempo que isso lhe faz falta você deixou que se interessar da mesma maneira. Você quer mais desacelerar. A ansiedade é cada vez menor. Os sonhos são cada vez menos extravagantes. Porém é cada vez mais exigente. Intolerante. Percebe que aqueles velhos de cara fechada que você temia passam a ser você amanhã. Que isso te incomoda. Mas te engole. E o seu outro lado, pacifista, tranquilo, ficou pra trás. Atrás daquela doença. Daquele trauma. Daqueles dez anos. Três anos. Três meses. Três semanas. Três dias. E vê que era possível respirar e não sabia.
E assim, de pouco em pouco, vamos nos afundando cada vez mais. Logo mais à frente nos perguntamos: Por que não veem o jovem que sou? E já estamos velhos. A pele ainda não caída. O rosto se ajeita frente ao espelho. Fora dali, sempre descontentes. Procurando algo, sempre famintos. Querendo algo, sempre carentes. E nos agarramos ao de sempre: Os poucos amigos. E pior que começamos a acreditar que não existirão mais muitos novos. Mesmo que faça novas amizades. Que tudo é mais árido. Que seu tempo está passando. Que você não acompanhou a passada conforme o esperado. Que deveria estar com dinheiro, independente, morando sozinho. Que as moças não sairiam mais com você pela sua beleza e juventude, mas por ter um carro e um apartamento e dinheiro para gastar. Que seria certamente trocado por você mesmo anos mais jovem, mas ainda seguraria o resto da vida que lhe cabe com os dentes. Mas rejeitou essa ideia. Anda por aí com roupas velhas se divertindo com amigos tão vagabundos quanto. Insistindo em tocar sem sabe-lo. Acreditando na juventude como algo interior.
Por um lado sua filha está crescendo, uma adolescente. E se sente menos protagonista agora. Vê sua avó escondida em casa. Escondida da vida. Sem amigos. Sem marido. Uma vida árida. Com sentido restrito. Sem grandes emoções. E você está bem no meio. Entrando nessa vida mais desiludida, mais sem graça. Mas ainda não é velho o bastante. É algo indefinível, como toda idade é. Mesmo assim, não quer virar adulto. Quer ser criança. Espontâneo. Brincalhão. Curtir a vida. Como qualquer velho. Como minha avó quando sai para passear. Como era o meu pai aos sessenta anos. Como é minha mãe agora.

II

Eu sinto saudade. Mas não é de você. É do que eu não vivi contigo. Do que queria e ainda sinto falta. Sou um pobre mendigo. Vivendo de restos há anos. Devo ser tão miserável que os outros pensam que não tenho nada a oferecer. Devo estar em falta, com o mundo e comigo mesmo. Só não sei sair daqui. Me esforço numa tentativa contra a corrente. Mas o mar está longe. É desse ponto que quero sair. Desrrepresar. Viver com toda possibilidade que se vive uma vida. Sonhar e realizar. Experimentar. Sorrir todos os dias e ter dias comuns como todas as pessoas.
Não tenho trabalho há um ano. Antes disso nos últimos cinco passei às migalhas. Faz falta uma vida normal. Não sei como seria, mas quero de novo um trabalho em que me sinta feliz. Ter dinheiro, segurança, cotidiano, fim de semana. Fazem anos que vivo numa segunda-feira como num domingo e isso deixou de ser algo bom.
Talvez assim aquiete um pouco. Seja menos exigente com as pessoas. Aceite a vida mais como ela é e possa respirar nas arestas, sonhar nos intervalos e cantar no chuveiro. Sem pensar em ser cantor. Esse se é o que me incomoda. Por mais que eu pense que está perto é sempre uma sensação. Uma motivação. Uma orientação. Mas tudo se perde numa segunda feira vazia e o prazer de não fazer nada ou nada produtivo.
Sinto uma ponta de medo de imaginar como eu seria agora com emprego. Como seria meu eu social inserido novamente. Se negaria minha porção out saider. Se me vestiria do inverso como um traidor. Se aceitaria a máquina e pensasse no dinheiro como uma solução. Se deixaria de ver as coisas por elas mesmas. Será que não somos assim?
E volto a dizer. Ser escravo. Para nas horas vagas poder sonhar. Vivo num marasmo. Cansei de não ter dinheiro. De meu trabalho não ser usado pelo mercado. Quero participar de tudo o que existe. Quero dar meu sangue. E viver nas folgas. Mas quero viver. Fazer algo com o que me sinta vivo. Vibrante. Orgulhoso. E desse caldo fazer parte nova da minha vida dentro do sistema.

III

Cansado da cidade. Onde tudo é complicado e nada permitido. Onde os esnobes distribuem senhas. E as pessoas se acotovelam em bares sujos. Cansado de ter que pensar para sair de casa. Para respirar. Para ir. Tudo é perigoso. Pelo menos carrega o perigo do desanimo. É preciso se inspirar para sair de casa. É preciso uma luz. Somente ir pra rua não é possível. Tem o perigo de ser tragado pelo vazio. De se cegar no caminho antes de voltar pra casa. Às vezes até dentro de casa é perigoso.
Falta de vida. Falta de amores. Falta de temperos. Falta de tudo um pouco. Até de falta. Quais são meus trilhos? Meus objetivos? Meus alicerces? Minha filha está adolescenteando por aí. Não tenho trabalho. Não tenho namorada. Moro com a minha mãe e dou graças a deus por isso. Tenho poucos amigos, mas ainda os tenho. Ainda me resta algum dinheiro do seguro da morte do meu pai. Ainda hoje lembrei dele. Pensei como seria bom revê-lo, mas não. Seria bom se não fosse ruim. E agora que ele partiu é mais fácil lembrar dele do que quando estava vivo. Assim como depois de rompermos com nossas amantes as valorizamos como uma coisa que elas nunca foram só para preencher aquele vazio. Gostava muito do meu pai. Foi um ótimo pai e amigo. Mas é muito mais fácil lembrar dele hoje.
O passado ilumina nossa história com diversas cores. Mas é preciso viver. Achar novas histórias no presente ou nos tornamos moribundos. É desse presente que sinto ânsia. Como um vampiro ressecado. Querendo viver tudo com uma intensidade fora do normal, mas num corpo velho, que começa a se cansar.
Imagino os risos. O frescor da noite. A varanda. As bebidas. Uma história. Várias histórias. Um romance. Tudo estava ali numa composição perfeita, delicada, iluminada. Só porque lembro dela. De algum modo somos construídos pelo passado. Ou pelo que nos lembramos.

IV

Somos todos porcos imundos. Comemos todas as outras espécies e as criamos só para isso. Para passar mal. Ter uma indigestão. E arrotar. Como se isso limpasse nossa alma. De toda nossa imundície e barbárie.
Dizem que as cidades estão mudando. Não acredito muito nisso. Que estão se reorganizando. Que estão sufocadas, como eu. Que é preciso voltar às ruas para brincar agora de ser ecológico, educativo, sócio-político. Que seja. Mas o ser humano é sempre o mesmo.
Em troca, cada vez mais zumbis de internet. Menos pessoas para conversar. Menos pessoas nas ruas ou aonde for. Se estamos mudando é para um ser mais apático. Algo mais domesticável.
Logo não será possível conhecer pessoas ao acaso. A não ser que seja um chato. Ou os marginalizados ou os marginais. É deles que tenho memórias. De seus corpos ocupando as ruas. De seu olhar levemente tocado pela droga procurando companhia. De seus afetos puros de corpo inteiro. De estarmos vivos com nós mesmos. Quase sempre sem dinheiro, e de que às vezes esse era nosso limite, brincar de ser gente até se esgotar os trocados.
E os idiotas com a vida ganha sem terem onde gastar. Fazendo programas que quanto mais sofisticados, mais deixam a desejar. Que não sabem trocar palavras, fazer confidencias ou dividir o silêncio. Pessoas sem sorte de serem livres. Presas não se sabe por onde. Talvez no mundo das aparências. Não da beleza. Mas do anticéptico.
Falso comodismo dos meus trocados. Me tiraram da sarjeta e da vida que amava. Me deram uma porca loção e uma roupa limpa para não frequentar a boca do lixo. Hoje vou me vestir no escuro. Vou corromper meu amigo que como eu hoje está limpo e aleijado. Vamos procurar poesia nos nossos amigos. Bandidos. Cruéis. E sempre vivos.


V

Hoje à tarde algo mudou em mim. Acho que foi o olhar daquela adolescente. Como se passasse uma tranquilidade. De que tudo vai dar certo. De que as coisas se encaixam sem esforço. Fiquei um tempo no quarto encostado em minha gata. À noite caindo. Depois liguei a TV e comecei a ver coisas que nunca veria num estado normal. Foi bom isso que a adolescente me passou. Acho que era amor.
Incrível como certos estados duram. E outros não. Graças a deus me separei de uma roubada. Uma mulher sem graça. Não há nada pior que isso. Quando se percebe, é ter sido roubado, mas antes mesmo do que se tinha imaginado. Pra recuperar. Somente um olhar interessado de uma adolescente bonita.
Hoje acho que não vou sair. Vou ficar em casa curtindo meu descanso. Eu e o Vinil fomos pra rua cedo e quero curtir a minha casa que tanto gosto. Gostaria de ser sempre assim, calmo e tranquilo e curtir as coisas simplesmente por existirem. Quero aproveitar enquanto o efeito não acabou. Quero sentir como seria se fosse outro.
E pensando bem. Talvez fosse sem graça. Ou não. Talvez fosse normal. Um pouco de talvez, acho que me caberia bem. Infelizmente as coisas não são todo dia assim. Não é?! Às vezes somos empurrados pra coisas inesperadas. Que não queremos. Que odiamos. E se nesse dia não nos olham, somos capazes de piorar. Até cavarmos um posso, nos rebelarmos. Enquanto é mais fácil olhar para alguém com a face tranquila, serena, feliz.

VI

Fazer amigos é mais difícil do que parece. As pessoas são receosas. Pelo menos as que me interessam. Em troca disso, dão seu facebook. São cordiais. Cumprimentam nos eventos. E seguem. Realmente, quando não há conexão, melhor não insistir. Quando vemos, estamos atolados de contatos que não nos favorecem. Só por algum dia estávamos conectados. E você pisa na rua ansioso por se conectar. Em sensações. Em algo novo. É quase um vício. E às vezes volta mais vazio ainda. E os intervalos. Enormes. E volta. Pra sua vida tranquila. Sem maiores expectativas. Curtindo ainda ter motivos para festejar. E que se fodam todos os que não sabem viver. Que você sabe. Mas hoje quer ficar só.
Liga para sua filha que foi para uma chácara com as amigas e só volta à noite, e percebe que está tudo bem. Que a vida é curta e logo sua filha vai estar crescida, tão velha e chata como você. E por isso resolve sair. Passear. Ser menos ranzinza e dar uma chance para as coisas acontecerem. Que está tudo na nossa cabeça o tempo todo e são os novos estímulos de definem nosso agora.
Resolve tomar um banho e fazer a barba. Seu amigo foi fazer até o cabelo. É sábado. Mesmo para nós que não trabalhamos é final de semana. E volta a creditar na vida. Imediata e urgente.
Ri de si mesmo. De como tudo isso é ridículo. Insano. E perigoso. E ainda temos a coragem de chamar isso tudo de realidade. Se assusta num frame. E logo já é só mais um estímulo. Uma nova sensação como sentida num filme. Que te conecta num clima de entretenimento. E logo passará quando estiver tomando banho. Banhado de outras sensações.

VII

Há pouquíssimo tempo fui coagido de parar de fazer caricaturas na rua e isso desmotivou em parte minha arte. Que sempre foi popular e direta. Hoje pensei em fazer um mural em cartum para expor em todos os lugares proibidos da avenida Paulista. Surgiu como uma ideia genial e por isso acho que vai dar certo.
A cidade voltou a respirar com os artistas de rua. Falta invadirmos as galerias, os centros culturais. Hoje os gêmeos fazem exposições pelo mundo. Eu sinceramente acho uma bosta. Assim como Maurício de Souza. Há quem diga que eles chegaram lá. Com certeza que perderam muito. Viraram homens de negócios. Não são mais artistas. Nunca foram.
Um artista não vive sem mostrar a sua obra. Mas não pode viver para ser visto. É preciso respirar. É preciso ócio. Não acredito em Dalí, muito menos em Picasso. A não ser na fase azul. Quando passava fome e tinha que limpar a bunda com seus retratos. Acredito em Matisse, Magritte e tantos outros.
Não se sabe o segredo do sucesso. Mas é algo contagioso. Que te esteriliza por dentro. Como uma bolha que se alimenta de tudo que respira. Quando você vê está morto. Só lhe resta acordar, dormir, trepar, mas sem nenhum sentido. Como um zumbi. Pra essas pessoas só há uma solução: Perderem tudo e caso não tenham se matado, achar algum sentido pra vida.
Minha vida está um pouco sem sentido. Mas há um estalar dos dedos para realizar algo. Algo que respire. Algo que de ar.

VIII

Hoje não estava pra ninguém nem pra coisa alguma. No final me deu uma crise de querer sair de casa, mas quando percebi, já havia desmarcado de sair com todos que já havia marcado. Tive que aceitar o fato de ter abortado meu próprio lazer. Se pudesse sairia sozinho. Mas o medo de sentir aquele vazio perturbador ainda é grande. Quando mais novo vivia passeando sozinho. Procurando coisas pela cidade em lugares incomuns. Um dia encontrei uma bexiga, aquilo me salvou a noite. As pessoas buzinavam. Pareciam perceber o andarilho que sou. Hoje me escondo em trajes seguros. Gasto meu dinheiro que nunca tive. Deixei de incomodar os imbecis. Me tornei um, disfarçado.
Tem tantas coisas equivocadas dentro de mim. Dez anos de análise não mudariam nada. Talvez algo novo. Algo a tirar a cegueira. Algo a permitir enxergar. Deixo de ver coisas. Me comporto como algo aceito, modesto. Mas não. Rejeitei a chata. Isso prova que ainda estou vivo.
Estou sedento de fechaduras. Quero abri-las todas. Escancarar o mundo. Mas a discrição é meu maior recorte. Deixei de ser ator. Músico. Sou desenhista. Cineasta. Quero pessoas. Não mulheres bonitas. Um baile de coco. Não uma balada. E fugir sorrindo. Procurando a próxima porta. O novo enredo. Até deixar tudo em paz.
Enquanto isso me disperso em pisos e paredes. Provando que sou fraco. Que se fincam as estacas e o corpo desaparece. Que sobram lendas. Fantasias. Que o registro das coisas não é o olhar. E nos envolvem. Distribuem. Contagiam. E não era a gente. Foi algo que por ali passou e nos usou como enfeite.
Deste modo não há como não agradecer aos deuses. Aos orixás. Por mais que se tenha receio de encontrar ausência de autenticidade em certos lugares. Os meus. Encontrei nos lugares mais improváveis. Uma vez na praia. Outras tantas assistindo peças teatrais. Agradeço aos deuses. Aos orixás.

IX

Acabei de voltar do bar. Em menos de meia hora vi uma mulher reclamando porque tinham lhe dado um bombom em vez de cocaína, um colega falando bem da policia e uma menina dizendo que ia votar no homem que ela não sabia o nome. Dei graças a deus de ter chegado em casa. Troquei a camiseta fedendo cigarro e não tenho muita ideia para este capítulo.
Mal vejo a hora de começar o café filosófico de hoje. O tema será ócio criativo. Algo que tem a ver com o nosso coletivo. Por outro lado estou de saco cheio de assistir tanta TV hoje à tarde. Ainda queria um conforto que fosse minimamente mais espiritual.
Pra mim as chaves estão nas pessoas. São elas que abrem as portas e sem perceber você as abre para outras pessoas. Gosto de ouvir meus discos com amigos, namoradas. Gosto de tocar com outras pessoas. No cinema me sinto bem sozinho. No teatro. Chaves. Por todo lado. E precisamos enfrentar, digerir, assimilar, ou nos energizar com o material humano, desde que seja tolerável.
Nessas horas sou grato à minha mãe, minha filha, minha irmã, minha sobrinha, meus amigos. O resto é tão vago como sensações que nos distraem ou arrebentam sem fazer parte de algo que se sustente. Frações. Pedaços que se despedaçam. Enquanto somos capazes de interligar o todo e sermos realmente felizes.

X

Hoje, segunda feira, vou assistir a um show de um músico que parece que está mudando os rumos da viola no Brasil. Um tal de Fernando Sodré. O timbre da viola, muito agudo se comparado ao violão, não me agrada muito. Assim como não me agrada minha voz aguda também. Vi umas músicas dele no You Tube e fiquei empolgado. Deu até vontade de fazer um som.
Tocar é uma coisa das que me dá mais prazer. Principalmente com outras pessoas. Gostaria de conhecer mais músicos. Músicos de verdade. Mas ainda toco muito mal para isso.
Esse exercício diário de fazer coisas por prazer é o que faz a gente conhecer novas técnicas. Aperfeiçoar os sentidos. Mas não é de uma hora para outra. Levam anos. Às vezes mais de uma década. O melhor mesmo é fazer as coisas por prazer. Quando menos se espera já está tocando por aí.
Vou dizer a verdade. É mais prazeroso ser um músico amador do que um desenhista profissional. Adoro desenhar, não é isso. É que quando se descobre profissional de alguma coisa, parte do desejo some. Como se depois de chegar em algum lugar, não tivesse mais para onde ir. A própria palavra já diz: amador: aquele que faz por paixão.
O medo de não querer fazer coisas em que não somos bons, é uma besteira. Só fazemos porque ainda não somos bons. À medida que sabemos que somos bons, perde a graça, e arrume um novo hobbie.

XI

O show foi ótimo. Encontrei o Morgani. Sentamos atrás de um grupo de adolescentes que assistiram todo show entediados. Estavam lá por obrigação, para fazer um trabalho de escola. Fico pensando como essas obrigações escolares são prejudiciais para o desenvolvimento. Em como a escola deveria ser mais livre. E em outra parte, como existem adolescentes chatos.
Imaginei ser uma das adolescentes àquela que no outro dia ficou me olhando. Acho que não era. Ficaria frustrado se ela me visse sem me notar. Era outra, do mesmo estilo. Mas sem a mesma beleza.
Eu e Morgani saímos do show para comer alguma coisa. Ele comentava cabisbaixo que um amigo apanhara de uns colegas no bar da sua rua. Achamos um lugar evitando os botecos da boca do lixo.
Não demoramos muito, fui embora, chegando às 22h em casa. Um passeio tranquilo e agradável. Como deveriam ser a maioria.

XII

Tive que desligar a TV, pois estava o Arnaldo Jabor falando e por mais que ele saiba falar muito bem, não há nenhum conteúdo que se salve. Vim pra sala e estou ouvindo de fundo minha mãe vendo o show de rock progressivo de seu namoradinho de infância. Peguei rincha com este estilo de música por causa duma namorada depressiva que ficava ouvindo Pink Floyd o dia inteiro.
Cada vez mais percebo que a música é um estado de espírito. Menos quando ouço o som dos pássaros, daí me percebo encantado por sua música tentando decifrar seu espírito. Música talvez seja a expressão de arte mais direta do ser humano e de outros animais, assim como a dança. Talvez por isso gostamos tanto, ou vice versa.
Começo a mergulhar em sons e ritmos sem me perguntar sobre seu estilo, padrão. Uma recém descoberta. Os sons como linguagem, expressão. E vejo a possibilidade da existência daqueles sons em outro contexto cultural, artístico. É como se uma pequena porta se abrisse me dizendo que tudo é possível. Basta experimentar.
Me parece que essa experimentação vai ser um pouco solitária, já que não tenho curtido tanto tocar com dois dos meus amigos que insistem no mesmo som. Pra quem começou no Punk, está bom.

XIII

Acabo de acordar e tomar café com minha mãe. Ela, um espírito jovem, gostou do som da banda de Rock que vai tocar hoje. Após ela falar isso, perdi um pouco o interesse, engraçado como nós filhos somos chatos. É um tipo de afirmação que depois de uma certa idade passa a ser ridículo.
Deixei de sair com ela para ver o show do Gil pelo mesmo motivo. Mas lembro que ela quando fora baladeira também não queria sair com seu filho adolescente. Acho que tenho um pouco de retardo.
Com meu pai foi o inverso. Sempre me senti como seu amigo e foi agora, no fim da vida, que percebi que era meu pai. E ser filho exige outras coisas além da amizade. Que amizade é gratuita, ser filho não. Apesar que ele sempre foi um ótimo pai.
Quando tive que passar umas noites dando remédios no meio da madrugada para ele, fiquei mal, pois não posso ficar sem dormir diariamente, fico mal, surto. E uma dessas vezes surtei e ele ficou muito chateado. Depois disso passei a voltar pra minha casa para dormir.
Papai, papai! Espero que esteja bem. Que esteja curtindo daí de cima e que existam festas para ir e mulheres para beijar. Que os vinhos sejam bons e não falte sua cachaça. Que existam homens aí como você. Loucos, engraçados. Que eu estou muito feliz aqui embaixo graças a você e tenho que resolver a minha vida o mais breve possível, pois logo mais o dinheiro que deixou pra mim vai se extinguir. Um grande beijo papai! Um grande beijo!

XIV

Ontem esqueci de tomar meu remédio e fiquei conversando com minha mãe sobre coisas da minha cabeça. Só me fez mal. Hoje estou bem e pretendo não fazer grandes esforços intelectuais. É um problema, porque por mais que eu queira fugir desse tipo de desgaste, ela está sempre vendo esses conteúdos numa TV de trinta e nove polegadas e gosta de discutir esses conteúdos comigo.
É preciso ter um autocontrole assim como o de não beber em excesso ou comer muita carne antes de dormir. Não sou santo. Ainda estou me acostumando. Até outro dia fazia tudo o vinha na mente, e vomitava e tinha ressacas, hoje tento evitar. Nem sempre é possível. Ontem de madrugada vomitei os torresmos que comi à noite.
Não pretendo controlar tudo pela previsibilidade das coisas. Pois as coisas não são previsíveis como as imaginamos. Mas é preciso evitar certos desgastes desnecessários. Como beber demais, comer coisas indigestas em demasia e deixar de tomar os remédios.
Outro dia, numa feijoada, eu e o Vinil encontramos um cara que fazia apologia a não se tomar remédios psiquiátricos. Deixamos o cara falar um monte de bobagens, pois sabemos como é cômodo para quem nunca surtou ficar fazendo apologia à antipsiquiatria.

XV

Reli o texto até agora, cortei alguns capítulos e confesso que não imagino como isso se tornaria um livro. Talvez me desse mais dor de cabeça tentar isso do que simplesmente ir escrevendo o que me desse na telha. Mas percebo que talvez já não seja possível.
Este capítulo mesmo, já comecei a escrever de modo como os outros, uma narrativa direta, sem frescuras, meio beat. E tenho que ser sincero. Está falso como o diabo. A própria preocupação de preencher pelo menos meia página em cada capítulo foi o começo disso.
Talvez ainda volte a escrever e dar continuidade e venha a apagar este final. Não sei ainda ao certo qual decisão tomar. Me corromper pela literatura ou deixar isso tudo como um relato autentico, verdadeiro.
Escolho o segundo. Bem sabendo de que as coisas começariam a desengrenar e que não quero que isto se torne um parto.

Sobre o começo do texto, para retomar e não deixa-lo sem sentido. Digo que continuo vivendo e envelhecendo. Que essa condição não mudará por mais que escreva um livro, ou até mais de um. Que me imaginem em breve em melhores condições, físicas e espirituais. Amém.

Comentários

  1. Impressionante, suas crônicas são muito profundas, pega a gente pelas reflexões de assuntos sérios, pela emoção de sentimentos sinceros e pelo seu senso de humor! parabéns Renê, não pare nunca de escrever, mesmo que poucos leiam, acho que tem muito proveito. Gostei demais!

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  2. parabéns Rene, percebo que escreveu com muita sabedoria e se vier mais texto aguardo com ansiedade. Vinil

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