Quase avatares (conto) - Renê Paulauskas

 Os dois largaram seus avatares de lado depois de quase um ano de interações via meta-verso e foram se conhecer pessoalmente. 

Tiveram um susto inicialmente, mas logo se reconheceram pelos mesmos gostos e vontades explícitos em conversas e jogos pela rede. Começaram a beber naquela tarde de domingo, deram uns tragos num cigarro de maconha, a conversa deslanchou como um rio que se inicia raso e termina caudaloso já lá pelas tantas. 

Ele levantou para se despedir, ela disse: "Fica!" Lhe roubando um beijo. Foram subindo as escadas em meio a beijos e apertos até chegarem num quarto pequeno. 

Tiraram suas roupas num alvoroço e pela primeira vez viram seus corpos nus. Ele, antes um avatar alto e musculoso, um corpo magro e delicado. Ela, grande e robusta, já não precisava ser linda e magra, segurando o corpo dele com vontade, sentindo sua epiderme que arrepiava. 

O rapaz, virgem, pelo menos de relações reais, ofegante e animado, até ela perder o controle e arranhar suas costas, depois desmaiou em seu corpo na pequena cama de solteiro.

O dia amanheceu e um sol brotou em meio aquele bairro cheio de cinza, do asfalto até os pequenos prédios, naquela periferia de São Paulo.

O rapaz sem jeito acordou com o sol na janela, desceu as escadas, beliscou algumas bolachas que estavam na mesa da cozinha, tomou um copo com água e se despediu com um beijo. Ela o abraçou com força por quase um minuto, ele atravessou a rua e mais um dia começou. 


II

O mundo dele era jogar video game, existir nas redes sociais com uma foto fake nos perfis e ver séries de animes. Gostava de desenhar, pensava em estudar artes plásticas ou algo assim. Também era um bom leitor, de gibis a livros comerciais.

Caminhando pra casa parou numa padaria. Ainda estava com fome depois da noite. Pediu um suco de laranja e um pão na chapa. Estava feliz por não ser mais virgem. Tomava o suco gelado naquele dia quente com satisfação. Gostou da noite. E ela parecia ter gostado. Um fio de sorriso desenhou em seu rosto.

Ela voltou pra cama depois que ele saiu e ficou lembrando os detalhes daquela noite. Algo forte lhe acometeu. Não ligava se seu corpo era magro. 

Estava nas nuvens, sorrindo à toa. E começou a cantar enquanto arrumava a casa. Nunca ficara tão feliz numa faxina.


III

Na cidade grande, atrás dos outdoors, pessoas em suas casas ligam os celulares onde um mundo perfeito é alimentado em várias dimensões.

Pelo meta-verso ele é descolado, extrovertido e valente. Seu avatar tem poderes que fora do jogo não fazem muito sentido, mas ali, ainda se entretinha, naquele universo particular.

Ela, depois daquele encontro, se sentia mais bonita. Perdera a vontade de jogar como antes. Queria um novo encontro.

Então resolveu entrar em seu avatar para encontrar com ele como antigamente.

Quando começaram a jogar, a imagem de seus verdadeiros corpos foram aparecendo em suas memórias. Sabiam que existiam, e queriam se ver.


IV

O menino, adolescente na verdade, se chama Horácio. E tem esse nome por influência de seus avós. Foi praticamente criado por eles, sendo que seus pais eram muito jovens quando ele nasceu.

Tem uma relação complicada com sua mãe, que parecia não ter muita vocação pra maternidade. E seu pai, via cada vez menos, não fazendo parte do seu dia a dia.

A adolescente, dois anos mais velha, morava com sua mãe, que estava fora naquele dia visitando o namorado. Sofia é seu nome. 

Divide as tarefas domésticas com sua mãe. Se dão bem, fora as brigas. Seu pai, também o vê raramente, mas tem muito em comum. 

Ela quer ser escritora como seu pai. Tem um diário desde seus treze anos.


V

Ela escreve:

"Gostaria de entrar no emaranhado dos seus cabelos e me perder. Seu rosto sério poderia ser trocado por um sorriso aberto. Volto aos cabelos, um tom rebelde. Sobrancelha grossa, olhar oblíquo, mãos compridas."

Ele:

Compra algo no mercado e começa a reparar na funcionária do caixa. Em como não era perfeita, mas ainda assim, bonita. Assim como a Sofia.

Ao chegar em casa num calor de quarenta graus, corre para o banheiro, muda o chuveiro para frio e se refresca com água gelada.

No meio do banho pensa em Sofia e começa a se masturbar. Brinca com a espuma em seu corpo deixando suas partes íntimas mais escorregadias. Meio em transe, ouve sua avó bater na porta perguntando se está tudo bem. "Sim vó, já tô saindo!" Demora mais três minutos e fecha o chuveiro.

Ela:

Lembra do som ofegante de sua respiração naquela noite. Em como parecia assustado e ainda assim entusiasmado. Em como ele parecia interessante e algo ainda a ser descoberto.

Ainda não tinha contado pra sua mãe com receio que nada daria certo, como sua vida social nos últimos anos.

Só tinha uma amiga de verdade e estavam brigadas há meses. 


VI

Ele ainda estava no colegial. Passava mais tempo desenhando do que anotando o que seus professores passavam na lousa. Tinha dois amigos. Na verdade um. O outro, era alguém por quem não tinha nenhuma admiração.

Passava longas horas com seu amigo. Desenhavam juntos. Horácio desenhava melhor. Estudavam juntos. Henrique tirava notas melhores. Era inteligente, justo e bom.

Quando não estavam desenhando ou estudando, estavam com o celular na mão. Às vezes falavam por mensagens no mesmo lugar físico.


VII

Estava ansioso pra contar pro Henrique sobre sua noite. Resolveu ir pessoalmente até sua casa. Quando chegou, Henrique estava tentando ensinar a matéria da prova ao Igor, que sempre entendia tudo errado. Pararam pra conversar e Horácio falou sobre a novidade. Depois mostrou pelo celular uma foto da Sofia. Henrique falou: "Bonita". Igor pegou o celular na mão e disse: "Gordinha", rindo alto. Horácio arrancou o celular de sua mão e pouco depois foi embora.

No caminho pra casa, pensava ter sido erro mostrar a Sofia para Igor. Que ele de fato era um idiota. E se voltasse a ver a Sofia, não a apresentaria a ele.


VIII

Sofia não aguentou e contou pra mãe. Mostrou a foto dele. Sua mãe pegou o celular com atenção: "Bonitinho, filha. Meio vesguinho, mas bonito. Usaram preservativo?" Sofia: "Claro mãe!". Mãe: "Quando vou poder conhecer ele?". Sofia: "Combinamos sair esse final de semana. Mas calma, ainda estamos nos conhecendo. É o Horácio, lembra? Das redes sociais..." Mãe: "Aquele menino que você vivia grudada no celular?" Sofia: "Sim, resolvemos enfim nos encontrar".


IX

A semana passou com os dois ansiosos pelo encontro. Dessa vez marcaram numa lanchonete perto da avenida Paulista, para de lá darem uma volta nos arredores.

Ela chegou mais cedo com medo de atrasar. Ficou esperando e escrevendo em seu diário. 

Ele chegou meia hora depois. A viu, abriu um sorriso desajeitado e sentou.

Ela sorriu e começaram a conversar:

Horácio: "Eu fiz um desenho de você"

Sofia: "Essa sou eu? Não parece comigo"

H: "Foi de memória"

Sofia abrindo o diário mostra o texto que escreveu sobre ele. Ele pega o diário e pergunta: "O que é olhar oblíquo?". Sofia: "É o seu olhar". Horácio: "Como assim?" Sofia: "Vesgo".

H: "Você também bem que precisava de um regime, não acha?"

Sofia se levantando para ir embora: "Se não gostou, por que perdeu tempo vindo até aqui?"

Horácio: " Calma. Estamos muito nervosos. Me desculpe, falei sem pensar. Na verdade não acho que você está gorda. Acho você linda! Aceita começar de novo?"

Sofia se acalma e voltam a conversar. Passeiam pela Paulista. Descem a augusta. Entram em outra lanchonete. Sobem para o metrô e antes de se despedirem ela lhe rouba outro beijo.


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