Materialidade das Coisas (conto) - Renê Paulauskas

Começou a perceber que as coisas tinham uma materialidade além de seus pensamentos.

Uma formiga minúscula apareceu em sua mão. E em vez de olha-lá com calma e atenção, a matou. Em seguida reapareceu e a matou de novo.

Já tinha visto deuses africanos, o espírito do seu pai, não poderia refutar tais visões jamais. Mas duvidava que hoje em dia as teria.

Assim teve medo de renunciar tais visões. Mas acreditar no invisível ficou cada vez mais distante. E ficava contente que fosse assim. Enfim tinha um mundo em seus pés. Poderia desbrava-lo mesmo estando na meia idade.


II

A única mulher que às vezes desejava conhecera ainda criança, bem antes de se tornar mulher. Seu desejo era não por seus tributos pessoais, apesar de se tornar uma mulher muito bonita. Mas sim por ter sido durante longo tempo ela a deseja-lo.

Sua primeira namorada também a conseguiu assim. Depois de saber de seu interesse a procurou e começaram a namorar.

Já a moça, tinha tido uma filha e se casado. Parecia que não havia muita esperança para ele. Ainda assim, às vezes pensava nela.


III

Seus amigos eram esquisitos, cada um a sua maneira. Tivera bastantes até então. Agora restavam: o jovem que começara a ficar velho. O novo amigo também na meia idade. Uma amiga cinquentona e um amigo baiano que nunca o via.

Recentemente recebera mensagens de um outro amigo de tempos atrás. Um amigo de quando eram jovens e tinham a arte em comum. 

Lembrou de uma fita cassete que recebera dele onde o Milton Nascimento cantava: "Amigo é coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito, perto do coração..."Lembrava e ria.


IV

Trabalhava como desenhista desde a adolescência, quase sempre como autônomo, fazendo caricaturas e às vezes, ilustrações.

Como todo artista tivera seus bons momentos, viajando o país de avião, hospedado nos melhores hotéis. Mas não via muita diferença entre um hotel cinco estrelas e outro sem estrela nenhuma. Alias, detestava hotéis, achava todos muito parecidos.

Quando não fazia eventos como caricaturista, fazia caricaturas nas ruas de São Paulo, perto de onde morava.

Fez caricaturas nas ruas por quinze anos. Até receber um dinheiro pelo falecimento de seu pai. Desde então só fez eventos e raramente ilustrações.


V

A relação com seu pai sempre fora problemática. Por um lado o tinha como um ídolo, por outro, um obstáculo.

Explico melhor: o obstáculo era no sentido dele sempre ter que discutir com seu pai, se impor. Pois se sentia à sombra do seu progenitor.

Fora isso seu pai batia na sua mãe e às vezes nele quando adolescente. Quando cresceu deu uma surra nele por todas as surras que ele e sua mãe tomaram dele ao longo da vida.

Anos mais tarde seu pai teve câncer e morreu três meses depois.


VI

Sua família era sua mãe, sua filha, sua irmã mais nova e sua avó. Os outros parentes vinham depois.

Sua mãe, seu alicerce. Moravam juntos e faziam tudo junto. Desde fazer compras, cozinhar, cuidar da casa, cuidar da sua avó.

A avó era uma figura, sempre sincera e engraçada falava da barriga do neto: "Puta barriga! Vai nascer!". Já com noventa anos.

Sua filha era seu mimo. Uma menina que se preocupava com os outros. Nunca brigavam, mas tinham que conviver longe um do outro desde que eles se separaram quando ele se separou de sua mãe.


VII

A mãe da sua filha tinha sido o grande amor de sua vida.

Se conheceram jovens, foi sua segunda namorada. Ela era baixista da Ópera Punk, ele era ator. Ela ficou impressionada com seus desenhos, ele lhe roubou um beijo.

Logo estavam viajando juntos até ela ficar grávida. Foram morar juntos, e a menina nasceu. 

Se decepcionou com a falta de maternidade dela. Se separaram depois de uma traição.


VIII

Meses depois teve um surto e foi internado no pronto socorro psiquiátrico. Voltou a morar com sua mãe e teve que recomeçar sua vida com uma doença mental.

No começo, após acreditar ter feito milagres, os primeiros anos foram de adaptação aos remédios afim de cortar os delírios.

Após essa fase já estabilizada, foi preciso controlar seu humor. Hoje em dia voltou a ser uma pessoa normal.

Hoje tem quarenta e cinco anos, metade da vida pela frente. Gosta muito de realismo, mas na verdade, é pra esconder os pés fora do chão.

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