LADO B- RENÊ PAULAUSKAS
LADO B
Aquela ansiedade estava desequilibrando sua rotina. Como uma
força de vontade própria, não tinha mais paz em sua casa. Não parava de comer.
TV, computador, violão. Queria um trabalho. Dinheiro não tinha, pensar em
mulheres estava fora de cogitação. Queria uma distração, mas o que fazer?
As opções sempre se resumiam a arte. Mas que arte sobrevive
sem uma vida por trás da arte? Precisava de vida e pra isso de dinheiro. Sem
dinheiro, não saia e resumia sua ansiedade em ficar ansioso dentro de casa.
Dinheiro para o transporte até que tinha. Poderia se
deslocar até uma exposição. Parou, pensou. Mas pegar dois ônibus, ter o risco
de pegar o rush, nem pensar. Estava com preguiça. Preguiça e tédio de ficar em
casa. Ligou para um amigo para ver se pagaria uma cerveja, nada.
Foi então que lembrou que tinha meio litro de cachaça. Não
teve duvida. Ligou para seu amigo convidando para tomar uma batida antes do
show de graça que teria mais tarde do lado de sua casa.
2
“Há tanto tempo ando pelas beiradas me equilibrando no meio
fio, que dá vontade de beber e beber até o dia amanhecer. E a saudade que sinto
no peito se mistura com os amigos que faço na noite, que duram temporadas como
duram os bares por onde passo à noite. E é essa névoa que carrego nos sonhos,
antes que me desperto, dos outros caminhos que tanto evitei. Tenho medo de
olhar e me ver caminhando, ver um velho dançando e assoviando, acordando os
domingos enquanto todos estavam lutando. Essa luta de cruz, que respeito tanto,
mas que nunca tive coragem de me crucificar.”
3
Quando criança, sobre o quintal de sua casa, Renê olhava o
varal e as roupas penduradas sob o sol e quando olhava algum pregador ali no
chão, pensava: ‘’devo guardá-lo ou deixá-lo como está?’’. E por mais ridículo
que pareça, perdia minutos inteiros em questões tão abstratas como esta. A
questão parecia ampla, deveria deixar as coisas seguirem um rumo sem sua
presença, ou faria diferença seu ato de organizar a vida à sua volta?
Se sentia único no mundo, mas mais que isso, não tinha
certeza de que existia de fato um mundo além de seus olhos. Um dia, passeando
com seu pai pela praia, perguntou: ‘’pai, a vida é um sonho?’’. Seu pai curioso
disse: __‘’Por quê?’’ __‘’Parece que estou sempre sonhando.’’
As coisas apareciam à sua frente e começou a senti-las como
frutos de sua própria imaginação...
4
A lua entrou pela janela junto com o frescor da noite.
Deitado no sofá a vida parecia tão boa que nada lhe via a mente. Sua ex-mulher
não lhe interessava mais e isso o aliviava. Não tinha novas pretendentes, mesmo
assim queria dormir só. Aquela cama de solteiro era muito estreita para dormir
junto. Não se arrependia de dividi-la diversas vezes, mas hoje queria dormir
só. Não iria pra cama correndo, antes sairia à noite, veria o que tinha a
oferecer. Mas estava feliz assim.
5
Ele fixava os olhos arregalados em meio a tanta beleza da
paisagem. A lua no topo destacando a noite. Contornando as casas, uma grande
nuvem branca. Luzes de quartos que acendiam como vagalumes. Mais abaixo a
silhueta escura da árvore do vizinho, em seguida sua casa iluminada com a luz
de fora. Tudo era impressionante, estar ali no seu quintal, precisava registrar
aquela imagem. Sem nada nas mãos, tudo que levaria era a imagem em sua memória.
6
“Eu tinha um endereço na mão, um beijo na memória e os pés
acelerados. No caminho me perdi, pessoas fui encontrando, meus pés repousaram
em várias casas que ia a pé. Sentada ali no canto, vi minha alma, do outro
lado. Contamos causos um pro outro, e quando a tarde caia nos reclinamos ao
primeiro beijo, que sem demora e atropelos nos deitaram na cama. No dia
seguinte saí. Com um endereço pra voltar, um beijo na memória e os pés
acelerados.”
7
O homem fecha o facebook e vai para cozinha para comer alguma
coisa. Abre a geladeira e vê as mesmas comidas que já não queria comer no dia
anterior. Volta para o facebook, abre o bate-papo e fica ali em silêncio.
8
Naquela casa era sempre noite, mesmo de dia. Ficava numa
esquina, e quem passasse por ela sentia uma tristeza tão grande, que se
esquecia de onde ia. Ali o tempo não passava, passava, mas parecia eterno. Quem
passa por essa esquina, nunca esquece, daquela casa fria.
9
Ele procurava criar
algo novo em sua arte. Algo que fizesse uma pequena revolução, como seu pai
dizia que o faria quando ainda era um adolescente. Sua vida parecia engessada.
Por mais que se esforçasse em sua arte, sempre voltava à mesma sensação de que não
chegara a lugar algum. Então, num dia qualquer, desligou o computador e passou
pela cozinha, onde de soslaio, viu a bolsa preta como se fosse um gato.
Estava ali sua inspiração. Na escrivaninha começou a
desenhar, e um desenho o assombrou. Uma cortina que parecia ter contornos
humanos minutos antes de dormir.
Ainda acordado, mas de olhos fechados, sentiu seu colchão
afundando como por um peso de pegadas de um gato em sua cama. Nada aflito, mas
curioso, ficou acordado durante dezenas de minutos que lhe tiraram o sono.
Noites se seguiam e o que parecia ser um início para sua
arte, se tornara mais um obstáculo rotineiro antes de dormir.
10
“Não carrego o mundo nas costas, tenho ainda muito brilho
nos olhos, talvez menos do que quando vivia louco, mas para realizar muita
coisa nesse mundo. Sou viajante, mesmo parado, às vezes me perco num simples
significado, mas ainda gosto de sonhar, dormindo ou acordado.”
11
De repente lhe bateu um cansaço, lembrar aquelas histórias
tristes, indignas, e lembrar que somos rasos e rastejantes, todos, mesmo os
Deuses. Perdido, era só um pobre diabo. Então subiu aquela escada. Ali, onde
tudo era claro e organizado, como são os manicômios, foi falar com Deus, com
quem discutiu, brigou, descendo a escadaria dizendo que nunca mais voltaria e
nunca mais fez as pazes.
12
Tem dia que nem folha em branco é. É do tipo que tirou
férias mesmo antes de arrumar emprego, nem isso. É algo que ninguém notou nem
vai notar, é uma típica segunda-feira.
13
Passada sua loucura, podia enfim curtir tomar sol no quintal
sem se preocupar com nada. Claro que sua mente continuava ativa, mais do que
uma pessoa normal. Pensamentos aos quais se repremia eram abatidos por novos
pensamentos bons e coincidentemente sentia pingos caindo debaixo das árvores nessa
hora, que antes acreditava ser um sinal religioso e hoje racionalizava. Nesse
instante passava um avião, que pelo som, em tempos de surto, sentia como se
estivesse passando de fase, como num videogame. Após os trinta segundos,
sabendo de todas as impressões equivocadas, mas ainda assim não podendo se
ausentar delas, pensou: Como é bom ter uma vida novamente.
14
“Olhando para parede, nas formas e sombras, diversos seres,
todos sem olhos. Escrevi uma carta para minha ex-mulher, dizendo o quanto a
amava, de como não tinha a esquecido, e brotaram lagrimas do meu rosto. Quando
voltei a olhar a parede seres de diversos tamanhos olhavam para mim.”
15
O amor estava vindo. Fonte de luz e energia, crescia como
uma bola de gelo. Mas o mau humor, o ressentimento e o rancor pausavam
constantemente o processo. Como poderia amar incondicionalmente, se o que
sentia por dentro era um grande nojo pela humanidade? Mas o pior é que sabia
que fazia parte daquele asco. Sua condição humana, justamente o denunciava,
deixando um enigma para ele mesmo. Como amar além do que já amava?
16
Tão controverso como suas palavras era sua vida. Fugia de
ideias ruins apressando o passo pelas ruas. Naquele dia os semáforos
descontentes atrapalhavam sua ida de volta para casa.
Se achava preso por livros, frases e palavras que não lhe
diziam nada. ‘’Ah, que saudade de surtar’’ pensava agora em seu jardim.
Sua gata o acompanhava lentamente, preguiçosa como ele, e
ele pensava: ‘’Nem tu, selvagem!’’. As coisas esfarelavam enquanto tomava sol.
Não ligava mais de terminar as coisas, achava isso uma
doença. Queria curtir a vida, mesmo sem dinheiro ou namorada.
Então voltou a olhar sua gata ali deitada, e disse: “O que
será de mim?”.
calma paulaskas, o universo está começando a conspirar a nosso favor
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