A Folha em Branco- Renê Paulauskas



A folha em branco. A folha estava em branco e me relaxava o fato de ser tudo possível e não definido. Agora surgiram as palavras, estas mesmas que insistem em dar relevo, cheiro, tato. Antes era uma nuvem molhada de coisas que estavam por vir, e que poderiam deixar de existir caso desistisse de digitar na sua tela coisas tão inúteis como essas.
Minha vida, os próximos meses, os próximos anos, são um enigma para mim. Acabo de fazer trinta e seis anos, mas estou otimista, acho que não vou morrer. Antes acreditei que sim, talvez tenha morrido em parte naquele dia. Mas hoje não. Hoje sou como eu renascido e acreditando na vida mais um pouco, e considerando todas suas facetas impossíveis.
De qualquer forma, não vou demorar anos para escrever este texto. Certamente falarei de coisas ao longo de alguns dias, pontuando memórias, reflexões e acasos. Talvez esse não seja o texto com começo, meio e fim que esteja acostumado, mas não sei escrever de outra maneira.
O homem se via só. Tão sozinho como se percebesse que nunca existira ninguém. Um tipo de solidão preenchido por ruídos de imagens de gente, barulhos de trânsito e um olhar vago no espelho. Era triste, mas sempre podia contar com seus remédios e dar fim aquela verdade, tão verdadeira, que lhe tirava o fôlego. Aguentava assim, meio surtado até uma, duas semanas, depois, ia tudo desmoronando e ele perdendo o controle. Então tomava seus anti psicóticos e voltava a respirar no mundo, com carros e pessoas que aos poucos iam voltando, voltando a existir em parte.
A primeira vez que beijei alguém na boca, estava na pré escola, embaixo da mesa com duas garotas. Acabava de ter caído uma borracha e fui para baixo da mesa pegar. Uma das meninas desceu pra baixo da mesa junto comigo e me beijou. Outra desceu e perguntou: “o que vocês estão fazendo?” e dei um beijo nela.
Eram dias inesquecíveis aqueles do parquinho. Um dia, amontoava-se uma roda para ver a perereca de uma colega, que fazia questão de exibir para todo mundo. Eram tantas pessoas, que não consegui ver nada.
Só consegui ver pela primeira vez uma xoxota, quando já tinha uns sete anos. Uma irmã de um amiguinho meu me levou a um banheiro de um clube, arriou a calcinha e depois disse: “Agora é sua vez.” Não queria mostrar, mas ela me obrigou.
Incrível é que ao entrar na escola, tive uma espécie de bloqueio pela falta de atividades e socialização como era na época do parquinho, onde vivíamos mais dos intervalos do que das aulas. Foi difícil me adaptar, nunca chegando a repetir nenhum ano, mas foi através do desenho, que descobri com meu pai, que fugia das aulas mal dadas desde o ginásio.
Hoje tenho dificuldade para enfrentar um concurso público, por exemplo, por ter fugido daquela escola tão ruim, que não se preocupava nenhum pouco em despertar a curiosidade do aluno. Quando achei que dava para ir para outro colégio, tive aulas de sociologia e política, matéria em que me formei na faculdade. Em verdade, só estudando para o trabalho de conclusão. Acho que sempre fui um vagabundo.

I
Quando fui despedido do meu primeiro emprego, de assistente de cartunista, fui fazer caricaturas na rua e em algumas semanas estava ganhando mais do que meu antigo salário trabalhando bem menos horas.
Fiquei quinze anos trabalhando na rua. No início descobri os eventos, que davam muito dinheiro, tendo viajado o Brasil inteiro durante seis meses no último grande evento. Mas com a crise de 2008, fiquei seis anos de mal a pior. Meu pai morreu, deixando o dinheiro do seguro de vida para eu me ajeitar. Faz mais de um ano que não faço nada, além de escrever, desenhar muito bem muito de vez em quando e tocar muito mal. Mas faz mais de um ano que não ganho um real. Às vezes fico um pouco desesperado, mas passa. Hoje tive a ideia de escrever um livro e vende-lo.
Acho que posso começar pela recordação daquela linda enfermeira morena tirando o tubo de sucção anal de meu pai, que não defecava há vários dias. Em como era bonita e verdadeira, cuidando do meu pai sem nenhuma barreira ou constrangimento em situações como esta. Em como eu ao contrário, tive problemas em cuidar dele, pois não podia passar mais do que uma noite sem dormir ou surtava. Em como numa semana surtei e ele não entendeu, talvez porque já estivesse muito doente, que eu me alterei por não ter dormido nas noites anteriores, mas isso é passado. Em como morreu sem falar comigo, mas como sorriu no seu penúltimo banho dentro do hospital para mim, me libertando de um mau entendimento sobre nós. De ir correndo me despedir no hospital quando já havia morrido, e ao ver seu corpo imaginar seu espirito sorrindo enquanto eu falava: “Eu vou passar mais um tempo aqui e depois eu vou também”. E por último, sobre minha preocupação dele já haver desencarnado no dia de sua cremação.
Brigávamos muito, muito antes de eu ser briguento. Brigava com minha mãe e eu interferia para há proteger. Foram inúmeras pequenas brigas onde eu apanhava e minutos depois meu pai vinha me abraçando e pedindo desculpas. Algo foi me revoltando quando fui me tornando adulto, o comportamento pacífico e ameno foi dando lugar a um novo homem, mais violento e vibrante.
O divisor de águas foi quando minha mulher, mãe da minha filha, na época com dois anos, me disse que tinha beijado outro homem. Lembro que conversamos e concordamos que não havia motivos para nos separarmos, que tínhamos uma filha juntos e que nos gostávamos ainda. Foi só irmos dormir, que acordei sobressaltado a puxando pelos cabelos e trancando ela para fora de casa. Foram horas dela batendo na porta dizendo: “Eu te amo”, até ela ir pra rua e só voltar com um policial.
Com meu pai aconteceu parecido. Foi numa páscoa, após ter me separado da mãe da minha filha. Meu pai chegara bêbado e gritara comigo sem motivo quando fazíamos pegadinhas de maizena no chão. Algo aconteceu naquele dia como um basta! Ficou razoavelmente ferido com uma costela quebrada, e nunca mais brigamos.
O ruim disso tudo e que passei de ser uma pessoa tranquila e calma para uma mais eufórica e explosiva. Por outro lado acho que hoje tenho mais a personalidade de quando era criança do que a de meus tempos de ginásio e colegial. Vivo melhor, sou mais feliz, o mundo é que está cada vez mais sem graça.
Erámos muito próximos eu e meu pai. Desde criança. Tínhamos uma brincadeira onde ele adivinhava o que eu estava pensando e ele sempre acertava. Andávamos juntos para todo o lugar, conversávamos muitas horas seguidas, era o meu melhor amigo, eu adorava meu pai.
Erámos tão unidos que brigávamos muito. Era como se não houvesse limites para parar e íamos tão longe que no final estávamos além de só conversarmos.
Com minha filha, tive o cuidado de cria-la ao contrário. Não ao contrário, também somos tão próximos quanto eu e meu pai, mas não permiti que ele visse brigas, muito menos de situações de brigar com ela. Sendo a única briga que ela presenciou foi a da minha separação com a mãe dela, no dia em que ela dormia profundamente sem acordar nenhuma vez à noite com dois anos.
 Não acredito que exista uma maneira ideal seja para criar os filhos ou lidar com os pais, existem problemas, que às vezes são resolvidos, barreiras, talvez para outras pessoas. Eu por mim achei muito melhor ter um pai próximo, mesmo com todo esse recheio negativo de brigas, do que se fosse uma relação respeitosa e distante. Meu pai me fazia rir, riamos juntos, conversávamos muito, as brigas eram detalhes que nos marcavam negativamente, mas nossa união nunca foi negativa, nunca mesmo.
Além disso, foi ele quem me ensinou a desenhar. Dizia ele que fora o contrário, que fora por descobrirem um caderno de tiras que ele tinha feito para mim, que o contrataram para ser desenhista a primeira vez. Fizemos uma parceria em alguns livros antes de trabalhar como assistente de cartunista e depois que fui despedido também.
Tinha o defeito de não conseguir chorar por mais dolorido ou triste que estivesse. Dizia que fora um processo que passara no começo da vida adulta onde decidira parar de chorar para não passar mais constrangimentos ou algo assim. O fato é que nunca vi lágrimas saírem de seus olhos e não por falta de esforço. E que ele até se esforçava muito em algumas situações que chegavam ao limite que quase ficarem cômicas.
Pai, tanta coisa boa deixou para nós. Seu jeito de gostar de passear, de caminhar e ir andando e descobrindo novos caminhos, sempre seguro como se estivesse em seu quintal. Em valorizar as amizades e ter seus filhos como amigos. Em mesmo depois da hora, depois da idade, depois do limite, aceitar as pessoas como elas são, sempre pronto para tomar uma cachacinha e ouvir um jazz. Ensinaste mais com seu jeito simples, do que qualquer um com essa vontade.
Mas não estamos mais contigo, não de fato, e estou aprendendo a me adaptar. Talvez seu jeito de viver inspire mais do que qualquer coisa que possa buscar. E quem sabe, eu volte a ser realmente aquele menino feliz do prézinho.



II
Tenho tido dificuldade há algum tempo para viver. Estar presente nos momentos do dia a dia em vez de correr e me preocupar em correr para outros lugares onde não estou. Talvez isso seja típico de nossa época, talvez não. O caso é que tenho tido prazer em coisas muito pontuais. Como ver um amigo verdadeiro e dar risadas de piadas sem graças. Escrever. Tocar menos. Desenhar menos. Gostaria de descobrir algo novo, e que não fosse pesquisando pela internet. Algo que surgisse. Pouca coisa tem surgido. Aliás, nenhuma. Nenhuma também não, pois surgem amigos novos, que duram pouco, ou não. Na verdade estou bastante saturado este ano, louco para começar o ano novo, já estamos em dezembro.
Se pudesse pedir algo ao Papai Noel, pediria para me tornar um escritor. Mas um escritor com futuro, algo que fosse diferente da minha vida como desenhista, algo nobre. Mesmo que falando sobre coisas baixas, mas com uma delicadeza de um escritor.
Minha primeira namorada era escritora, e era uma chata. Um dia escreveu umas três páginas sobre um suposto eu que não tinha nada a ver comigo, odiei. “Você só pode escrever sobre o que você conhece”, palavras do papai.
Ainda não sei o que é ser escritor, por enquanto só escrevo. Ouvi boatos que não é uma vida das mais interessantes, pelo menos o fato de escritores de verdade terem que passar mais tempo escrevendo do que vivendo. Nesse aspecto parece muito próximo a do desenhista. Sem contar o fato de eu ser desenhista contar muito pouco sobre minha personalidade. Concluo assim que isso de eu querer ser escritor é mais uma fantasia do que algo definitivo. Ou talvez queira mesmo.
De qualquer forma é assim, nessa fantasia que me sinto bem ultimamente. Sou bastante preguiçoso com leitura, li muito na adolescência e juventude, mas ultimamente abandono a maioria dos livros por os acharem ruins ou mal escritos. Gosto muito de Sartre. Acho poucos escritores tão geniais como Kafka em O Processo. Gosto muito do realismo fantástico de Julio Cortázar, Gabriel Garcia Marques e Michael Ende. Mas não escrevo como eles. Escrevo como consigo, e eles também.

III
Hoje subi do meu quarto no meio da noite para casa da minha mãe para dormir no sofá da sala. De manhã fui para cama ao lado no seu quarto e dormi profundamente, até olhar ao lado a cama vazia e não tive mais sono. A morte do pai, de um modo genérico, faz parte do crescimento de um homem, a morte da mãe não. A mãe é sua não importa sua idade e quando ela se for, que arrume uma substituta, ou irá pro beleleu.
Antes de sair de casa para casar com a mãe da minha filha, brigávamos muito. Foram ao todo duas ou três vezes que foi me visitar, quando a filhota já tinha nascido até seus dois anos. Porém, quando enlouqueci, voltei para sua casa. Passado uma semana de um surto meu onde fiquei parcialmente inconsciente, ela mudou. Diz ela que ficou com medo de perder o filho. Desde aquele dia nos damos muito melhor, com a ressalva de que nada é perfeito, às vezes ficamos cheios um do outro, isso é o normal.
Casar foi só uma vez, ainda que não oficialmente com a mãe da minha filha. Achei o fim do nosso relacionamento naqueles cômodos onde no segundo ano juntos, não nos víamos e tínhamos só responsabilidades para dividir.
Passei, depois da doença, a me acomodar nos cômodos da minha mãe. Continuei trabalhando, namorando, mas nunca mais pensei em sair de casa. Com o tempo tive meu próprio quarto fora da casa da minha mãe e não acho mais motivos para ir embora, casar nunca mais.
Tenho muito medo da solidão, pois no meu interior, sou sozinho como o breu. Acho prazer no contato e convívio com as pessoas, vejo o mundo em seus olhos. Não me aguento sozinho por muito tempo, enjoo de mim, não me aguentaria se fosse clonado. Sou muito exigente com todos e comigo não é diferente, talvez por isso esteja mais sozinho. Também pelo fato da minha doença insistir em me dizer, que existo só no mundo, um mundo de ilusões, e me dar provas disso.
Acredito que este mundo é como um sonho desde criança e isso faz parte do meu íntimo, da minha personalidade, e me sinto bem com isso. O problema é quando aparece uma faceta mais sombria dessa conclusão, que me domina, me faz mal, daí só tomando remédios para voltar ao normal.
Tomo remédios a mais de dez anos e vou toma-los pelo resto da minha vida, caso contrário surto. Pego receitas de lítio e respiridona de três em três meses, na última visita peguei para quatro meses. Controlo meus surtos com autonomia, não tendo nenhum surto grave ou passagem em pronto socorro há mais de dez anos, acreditando que minha doença esta controlada. Isso não quer dizer que às vezes eu nunca tenho um pré surto e as vezes fique altamente instigado por ele, mas antes de perder o controle, tomo uma superdose de anti psicóticos até voltar ao normal.
Já me adaptei a essa vida. Posso beber e fumar maconha controladamente. Não bebo e não fumo mais maconha porque estava me fazendo mal, achei melhor parar. Faço sexo. Tenho uma vida normal. Meu diagnóstico é de Transtorno Bipolar, apesar de não ter depressão e viver a maior parte do tempo, e ser esse meu descontrole, a euforia.

IV
Hoje imagino que esta tudo bem. O fato de morar com minha mãe, da filhota ser criada pela mãe e avó materna, de tudo ter sido melhor desta maneira, mas nem sempre pensei assim. Até ontem me atormentava pelo fato de viver aqui, sem emancipação, e de não ter criado minha filha, que amo tanto. Mas com os transtornos de surto nos dois, três primeiros anos, talvez que não daria conta de cuidar da minha filha, talvez surtasse mais. O caso de não ter saído mais de casa, depois que voltei também se deu ao fato que aqui tenho conforto, paz espiritual e convivo bem com minha mãe, dificilmente acharia isso tudo em outra casa. E o fato de não constituir outra família se deu de modo consciente de que não queria mais ter filhos, tanto pelo fato de querer curtir e me dedicar à minha única filha quanto pelo fato de que dá muito trabalho e requer uma dedicação que não teria duas vezes em vida, por mais que tenha adorado todos os momentos que vivemos juntos eu e a filhota. Conclusão: Estou bem onde estou.
Acho também que sou capaz de ter uma vida própria e autônoma aqui dentro desta casa. Que tive diversas namoradas que habitaram o meu quarto e que isso para mim, junto com um trabalho e algum dinheiro, é a vida, no seu melhor. Não buscando muito mais do que isso, como boas companhias e amigos, acho que seria uma vida perfeita.

Fora isso, são coisas que acontecem sem imaginarmos ou prevermos. Uma folha em branco cheia de possibilidades. Como nos sonhos, mas um sonho sonhado por alguém. Algo que venha do além, de outra dimensão, que resulta em nossa vida pé no chão.

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