Miguel (conto)- Renê Paulauskas
Miguel
I Pequeno desenhista
Aos três anos viu seu pai traçar
um círculo sobre o papel, puxar uma linha que se dividiu em outros dois traços,
cortar essa linha acima por uma reta e fez dois pontos e um sorriso. Ao
terminar o boneco desenhado parecia ter ganhado vida. Logo cedo ele queria
aprender a fazer aquilo, desenhar.
Conforme foi crescendo seu
desenho foi melhorando. Ao aprender as palavras ia introduzindo junto aos
personagens, criando cenas e depois cartuns.
Seu pai lia para ele os cartuns
do Fradim, do Henfil, antes de dormir. Adorava, dava muitas risadas até pegar
no sono.
Passava horas criando histórias
com desenhos e frases. Cenas que começavam com um desenho e acabavam virando
piada de algo muito engraçado pra ele. Tinha já vários cadernos completos de
desenhos. Quando via algum desenho, como um homem musculoso, pensava como
desenhar os gominhos do abdômen.
Com sete anos, seu pai achava
que não tinha mais o que lhe ensinar e o levou numa escola de desenho. Chegando
lá o professor pediu que desenhasse alguma coisa. Na hora o garoto travou
diante daquela enorme prancheta de desenho, mas depois fez algumas figuras, que
o professor achou geniais. Ele nunca tinha ficado tão cheio de si, contente em
saber que sabia fazer aquilo que mais gostava, desenhar e criar histórias.
II Prézinho
Um ano atrasado, com cinco anos,
depois de muito chorar na primeira pré-escola, os pais de Miguel o levaram a
outro prézinho, também próxima de casa.
Miguel se sentia mal no primeiro
dia logo na entrada, onde mães deixavam seus filhos, se sentindo abandonado por
sua mãe e começando a chorar até chegar uma colega e perguntar "Por que
você está chorando?". Miguel parou e começou a olhar o interior daquela
que seria sua primeira escolinha.
Havia um terreno amplo para
brincar no intervalo com hortas e jardim. Do outro lado uma piscina de areia
com brinquedos para os menores.
Haviam brincadeiras ao ar livre
como cirandas, passa anel, pega-pega e muitas outras.
Os meninos cantavam uma música
para a professora mais bonita "Eu tenho uma tia que se chama Mônica,
quando ela vai a escola nós dizemos ulálá!"
Uma vez Miguel, já enturmado,
deixou cair uma borracha da carteira e desceu embaixo da mesa para pegá-la.
Quando ia voltar, uma colega desceu e deram um beijo. Depois uma segunda colega
desceu também e se beijaram. Enquanto isso a professora aos berros "Miguel!
Já pra aula!"
Mas foi num intervalo,
conversando com uma desconhecida colega muito bonita que teve sua primeira
conversa íntima mais próximo do que seria um namoro muitos anos depois.
Miguel adorou aqueles dois, quase
três anos, onde ia e voltava feliz todos os dias da semana até fazer sete anos.
III Primeiros anos no colégio
Quando Miguel saiu do prézinho e
entrou no primeiro ano, não se adaptava aquela sala fechada. Era difícil
prestar atenção na aula e quase repetiu.
Os anos seguidos foram mais
fáceis, mas quase não prestava atenção na aula, vivia desenhando nos cadernos.
Só estudava se tinha risco de repetir, daí tirava dez surpreendendo à todos.
Uma vez tirou dez em matemática
logo nas primeiras provas. Contou animado para seu pai ao chegar em casa, que
respondeu "problema seu." Miguel nunca mais tirou dez em matemática e
nunca também entendeu seu pai.
Às vezes acompanhava seu pai nos
bares do bairro. Gostava de batatinhas em conserva e refrigerante. Quando
anoitecia voltavam para casa.
Um dia ao sair do colégio, Miguel
em vez de ir pra casa foi para casa de um colega, e lá ficaram até o fim da
tarde. Quando Miguel percebeu, voltou correndo para casa. Ao se deparar com seu
pai, esse gritou "Onde você estava?" E Miguel disse "aqui".
E foi levado pra dentro de casa pelo seu pai furioso.
IV Vôlei
Com nove anos, andando de
bicicleta pela rua de casa, um outro menino de bicicleta do mesmo tamanho que a
sua para em seu caminho e se apresenta.
___Olá, meu nome é Fernando, sou
novo aqui. Podemos andar juntos?
___Oi, meu nome é Miguel.
Alguns meses depois estavam na
casa vizinha de Fernando desenhando e jogando bola. No fundo da casa tinham
improvisado uma quadra de vôlei e ficavam horas até anoitecer jogando. Quando
Miguel percebia que já passava do horário e estava escuro, ficava com medo de
voltar sozinho, e Fernando corria com ele até sua casa na rua de baixo. Às
vezes Miguel ao chegar em casa ficava com pena de Fernando e o acompanhava de
volta à sua casa, e em seguida os dois voltavam correndo até a casa de Miguel.
___Agora chega!___Diz Fernando
ofegante___Agora eu volto sozinho. Até amanhã.
E assim passavam as tardes depois
do colégio, jogando vôlei, futebol, bicicleta, pipa e outras. E às vezes
desenhando.
___Miguel, como você consegue
desenhar tão bem? Gostaria de desenhar como você.
___Eu estudo numa escola de
desenho, se quiser ir um dia comigo?
Foram os dois a pé na escola de
desenho que ficava ali no bairro uma meia hora de caminhada. Fernando levou
alguns desenhos, mostrou ao professor e durante quase um ano passaram a
frequentar o mesmo núcleo de arte. Mas Fernando não progredindo, acabou desistindo
e se dedicando mais ao vôlei.
Já com doze anos Fernando
inscreveu Miguel e seu time no campeonato de vôlei da escola sem ele saber. Era
visível o empenho de Fernando nos jogos, e sem que Miguel notasse foram
ganhando um a um. Até chegar a final, e quando no saque decisivo, Miguel sacou
por baixo uma bola tão alta que demorou alguns segundos no ar até ver que tinha
caído fora da linha. Ganharam prata.
Miguel e Fernando continuaram se
vendo sempre até o pai de Fernando se mudar com a família para outro estado.
Anos depois, já com quinze anos
cada um, Fernando foi visitar Miguel, que para o seu espanto, tinha crescido
mais de quinze centímetros. Fernando tinha se tornado um verdadeiro jogador de
vôlei.
V Ator?
Era um adolescente magrelo e narigudo com catorze anos.
Conhecido no colégio por alguns por desenhar muito bem.
Foi então que um colega se apresentou querendo montar uma
peça de teatro. Logo fizeram amizade e começaram a frequentar peças e peças
como pesquisa. Começaram a ensaiar bem amadoristicamente.
Até um dia, numa casa de cultura perto de sua casa, viu o
começo de ensaio de um grupo, onde os corpos semi nus se aqueciam uns aos
outros criando imagens de cenas que surgiam naturalmente. Era aquilo, aquele
teatro que queria fazer. Se apresentou à todos, ajudou no som. Pouco tempo
depois estava no grupo como operador de som nas apresentações e fazendo os
cursos como estudante pra se tornar um ator.
A rotina era chegar antes do almoço na casa de cultura aos
finais de semana pro ensaio geral, donde às vezes saiam para ver uma peças como
pesquisa, e de semana fazer o curso de teatro ministrado pelo diretor do grupo.
Se apresentavam em vários teatros, ele sempre operando o
som. Com o tempo passou a fazer quase de modo automático. Passaram três anos, e
depois de já ter feito os cursos para ator, começou a achar as interpretações
da peça muito exageradas, começando a desinteressa-lo.
Nesse tempo fez um curso de Clown e gostou muito, achando
que se iria seguir como ator, seria mais ou menos por ali.
Já com dezessete anos fez sua primeira apresentação de teatro de rua
com o grupo que fazia parte. E ao contrário do que imaginou, não sentiu nada
especial. Poucos dias depois abandonou o grupo e nunca mais voltou.
Para ele, não ter sentido nada em sua apresentação era um
sinal óbvio que nunca teria o prazer necessário à esse ofício, e a arte não
estaria dentro dele e somente na superfície. Já com o desenho sentia o
contrário, um enorme gozo ao terminar uma obra. Algo que o engrandecia por
dentro, o inspirando cada vez mais.
Então voltou a se dedicar ao desenho como profissão.
VI Ópera Punk
Depois de ter passado a primeira infância na escola de
desenho, após passar quatro anos no teatro, volta decidido a se tornar
desenhista profissional.
Nessa época encontra sua verdadeira turma. Jovens como ele,
empenhados no universo do desenho trocavam impressões, gostos em comum,
experiências.
Foi ali que conheceu alguns dos que seriam grandes amigos.
Carlos além de desenhar gostava de escrever. Gostava de
histórias de terror e de humor ácido. Às vezes lia seus contos quando marcavam
de sair à noite. Carlos era gótico e levou Miguel nas suas primeiras festas
punks.
Na primeira vez que Miguel foi com ele num show punk, vendo
aquela dança onde todos pareciam se acotovelar uns nos outros, começou a pular
tão alto que uma roda se fez envolta dele. Pouco depois Carlos falou a ele que
estava fazendo sucesso. Eram espaços periféricos, mas ao mesmo tempo centrais
para aquelas tribos urbanas. E em pouco tempo Miguel se tornou punk.
Uma vez Carlos veio com a ideia de entrar numa ópera punk.
Miguel se animou com a ideia e foram juntos à cidade vizinha de trem conhecer o
grupo de teatro.
Foi lá que Miguel conheceria a jovem baixista da banda, a
Marta, com quem teria um relacionamento e uma filha mais tarde.
VII Marta e Nara
Marta era uma punk. Gostava de humor ácido, era valente e
tocava baixo numa banda punk além da banda da Ópera Punk.
Miguel era ainda um pouco tímido, mas namorando Marta foi
perdendo um pouco da timidez. Gostavam de fazer viagens pra praia ou cachoeiras
e sobretudo de namorar.
Foi assim que após um ano de namoro, Marta ficou grávida. E
Miguel quando soube, foi o dia mais feliz de sua vida. Pulou de alegria e
contou pra todo mundo que seria pai.
Foram morar juntos num apartamento próximo do centro. Foi a
primeira vez dos dois saíram da casa dos pais.
Nessa época, Miguel fazia caricaturas nos bares para ajudar
a pagar as contas. Marta trabalhava como operária numa fábrica.
Nasce Nara. Os três são expulsos do apartamento e vão morar
na casa da mãe de Miguel.
As duas não se dão bem e Marta vai embora sem avisar Miguel.
Miguel encontra Marta e sua filha na casa de sua sogra.
Procura uma casa para alugar e leva Marta e Nara para morar com ele num bairro
mais próximo da casa de sua sogra.
Vivem os três juntos até Nara fazer dois anos. O
relacionamento dos dois esfria e ambos começam a sair com outras pessoas até se
separarem definitivamente.
Miguel volta a morar com a mãe e Nara e Marta a morar com
sua sogra.
Apegado à filha, Miguel passa a pegá-la todos os finais de
semana e continuou a pagar o valor da sua escolinha.
VIII Som dissonante
Depois de estar separado de Marta, indo pegar sua filha num
final de semana, Miguel encontra no caminho, na estação de metrô, Rubinho, que
conhecerá na escola de desenho. Trocaram contatos, risadas e seguiram seus
rumos.
Alguns dias depois Miguel liga convidando Rubinho para ir à
sua casa.
Rubinho aparece com um saxofone e canta uma música que tinha
acabado de compor. Nesse momento se abre um novo universo para Miguel.
Os dois começam a frequentar a casa um do outro, compondo e
tocando juntos. Rubinho dá um violão para Miguel aprender a tocar. Os dois
escrevem letras muito boas, assim como poemas, contos e crônicas, mas a verdade
é que tocavam e cantavam muito mal. Mesmo assim Miguel continua compondo mesmo
sabendo de suas limitações.
Até um dia Miguel conhece Vicente. Que a princípio não dá
muita atenção, mas acaba tocando violão em sua casa e desse encontro nascem
doze músicas, uma atrás da outra. Até a mãe de Miguel elogia.
No segundo encontro, Miguel ansioso para fazer novas letras,
percebe que Vicente só sabe aquelas doze músicas, e fica um pouco decepcionado.
Com o tempo nem Rubinho, nem Vicente tocavam mais. Mas
Miguel continuaria compondo, já sem tocar violão, com sua péssima voz.
IX Palavra nova
Algo notável acontecia aquele homem quando estava em
sua humilde casa. Acontecia quando estava deitado, sentado ou caminhando. Uma
palavra nova, que desconhecia o significado, vinha à sua mente. Em seguida
pesquisa o seu significado e escrevia um texto começado por ela. Acreditava que
assim, naturalmente, o universo o instruía. Um método preguiçoso, mas
eficaz.
Escrevia poemas, contos e crônicas. Sempre de temas
variados. Era muito criativo, e nada prático. Por isso mesmo ia escrevendo, sem
maiores prevenções. Como um grande passa tempo, uma arte amadora.
Estranhamente, seus amigos ao longo da vida também tinham em
comum esse hábito, escreviam. Liam-se, trocavam impressões, faziam parcerias às
vezes. E com o tempo foi percebendo que esse costume sempre fora natural.
Chegou a escrever algumas crônicas para um jornal, mesmo sem
ganhar um centavo. Mas gostou de ser editado. Só parou por ser um jornal de
política e não aguentava mais esse tema.
Gostava de escrever sobre sua própria vida, a única que
tinha ciência. Suas histórias eram reflexo de uma imaginação muito criativa à
uma rotina caseira com pouquíssimas novidades, isso quando saia com seus amigos
uma ou duas vezes por semana.
Era tímido, mas adorava um bom papo, ou um papo-cabeça. Sua
maneira de conhecer as pessoas era desse jeito, conversando. Ali conseguia
captar o que era realmente aquele indivíduo. Quando a conexão era forte, podia
surgir uma amizade ou até um namoro, se fosse mulher.
Era uma vida vivida com uma lupa, observando os pequenos
detalhes e não chamando a atenção. Desse modo, só era notado por outros, que
também de lupa, os enxergava e via nele um brilho especial.
X Meia idade
Antes dele acordar a luz agita. Percorre o caminho dos seus
pés até a sala, banheiro, cozinha, onde senta e toma café com leite frio e
corta o pão pra torradas na frigideira, e as come com manteiga. Tira a calça de
dormir e põe a de usar de dia, laranja. Seus olhos no espelho do banheiro
mostram as olheiras de nascença, o olhar meio vesgo e arregalado, o cabelo mal
cortado com as laterais brancas, a boca fina e os dentes tortos sem exagerar. A
barriga proeminente, sempre presente desde os trinta anos começa a ser legítima
agora aos quarenta e seis de sua idade.
Vai até a sala e começa a dar voltas inquieto. Começa a
cantarolar. Primeiro uma frase, pega o caderno e começa a escrever. Pega o
celular e canta. Faz outra duas horas depois. Vai até a cozinha, abre a
geladeira, pega o Strogonoff para esquentar e almoça com arroz, legumes e um
pedaço grande de brócolis. Lava a louça e volta pra sala.
Lê dois capítulos de seu novo autor preferido: Tolstoi. Fica
surpreso como aquele autor russo do século XIX, tem tanta coisa em comum. Após
menos de uma hora fecha o livro, respira lembrando as passagens que acaba de
ler. Dá umas voltas pela sala e liga a tv.
No programa uma humorista sem graça, mas famosa prende sua
atenção por isso mesmo, pensando se não teria uma chance com suas canções, mal
cantadas e sem acompanhamento. Mas ainda assim com boas letras.
Escrevia também poemas e prosas, tudo com quase zero
leitores, por isso gravava as canções no YouTube que começava a lhe dar mais
visualizações, e com isso, mais ânimo.
Tinha dedicado toda sua infância e juventude ao desenho.
Chegou a ser assistente de um cartunista famoso, ilustrou dois livros e fazia
caricaturas em eventos, mas não achou o que procurava. Passada sua juventude se
juntou com alguns amigos artistas e começou a escrever e compor canções. Agora,
doze anos depois parecia estar tendo sua primeira fase aparecendo de alguma
maneira nesse novo universo.
O que lhe dava fôlego, não era um objetivo, como fazer
sucesso pura e simplesmente, e sim o contrário, não saber onde isso o iria
levar. Isso abria pra ele todas as possibilidades, pois tudo cabia em sua
imaginação.
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